Postagens

O Alento e os Ossos

Imagem
    Vertigens Inadiável é o ímpeto, febre que não finda, Nesta busca voraz, de anseio e de agonia, Qual mística em delírio, que na alma ainda Lateja pelo abraço em santa heresia.   Sob o escombro das almas, onde o nada vinga, Fulge a rosa imortal de uma herança tardia: O sonho ancestral que no peito respinga, Frente ao abismo mudo da vã travessia.   Toda busca quando urgente, se faz efêmera, Pois o ser se consome em seu ápice ardente, Extraindo o cristal da matéria mais áspera.   E corremos no encalço do Cronos infante, Carrasco que nos foge, senhor negligente, Que nos cansa o espírito em lida constante.   Nesta marcha fustigante ao afeto prometido, Que em cansaço negamos após o degredo, Resta o sopro final de um âmago ferido.   Pois nas vísceras últimas, onde a vida é estranha, Talvez nos acolha, sem véu ou segredo, A Irmã me trevas plena que habita a montanha. Do livro de poemas: “Sinfonia para cães...

Ontologia da Vacuidade

Imagem
         Fenomenologia da Personalização: Uma Análise Crítica de "A Era do Vazio" de Gilles Lipovetsky I. Introdução: O Vazio como Categoria Sociológica      A obra L'Ère du vide: essais sur l'individualisme contemporain, publicada originalmente em 1983 por Gilles Lipovetsky, estabelece-se como um divisor de águas na hermenêutica da pós-modernidade. A relevância do autor, consolidada por sua participação em fóruns de alto prestígio intelectual como o Fronteiras do Pensamento, transcende a mera análise conjuntural para alcançar o estatuto de uma ontologia do presente. O impacto persistente desta obra reside em sua capacidade de circunscrever e sistematizar o "vazio" não como uma ausência niilista clássica, mas como uma categoria central da experiência humana contemporânea. Este vazio existencial é o sintoma de uma subjetividade que, ao se desvincular de metarrelatos e marcos transcendentais, vê-se enredada em uma carência de sent...

Agregados e a perpetuação simbólica das estruturas escravocratas

Imagem
       Originalmente concebido em 1964 como tese de doutorado defendida na USP, “O homem livre na ordem escravocrata”, de Maria Sylvia Carvalho Franco, percorreu um itinerário editorial marcado por sucessivas reimpressões até submergir em um hiato de disponibilidade nas livrarias. Durante esse período, sua sobrevivência intelectual garantiu-se pelo recurso incontornável às fotocópias, dispositivos que alimentaram gerações em cursos de História e Ciências Sociais, nos quais a obra ascendeu ao estatuto de referência paradigmática.       A investigação inaugura-se com uma interrogação ontológica fundamental para a compreensão da arquitetura social brasileira: qual o sentido imanente do trabalho escravo na produção colonial moderna? Distanciando-se das analogias fáceis, Maria Sylvia identifica uma clivagem semântica entre a escravidão clássica e a moderna que elucida os processos históricos divergentes das sociedades que as sediaram. A autora i...

O tempo do exilado

Imagem
Testemunho meus gestos alheios a este rosto.   Folheio essas páginas sujas, sinto o sorriso trincar-se em silêncio sob o ruído das vozes na sala.   Neste frio imune às horas, neste exílio onde os dias não penetram, descubro que jamais existi.   Sou carcaça deserta.   Sou feito de carne que o tempo apodrece.     Sem ontem, sem amanhã.   Um espectro oco, arrancado do mundo, banido da história que juraram ser minha.   Encaro essa liberdade que apavora e vigio.   Espero pela palavra que não conheça a derrota, pelo verbo capaz de inaugurar o agora e remendar a cronologia feita em cacos: do ponto de afetos, a tessitura divina.   ...   Olho para estas mãos: movem-se sozinhas.   Leio, enquanto meu riso se desfaz, frágil diante da conversa dos outros.   Há um gelo aqui que o tempo não toca, uma estase que me confessa: a vida nunca me habitou.   Esvazia...

Sem deixar rastros

Imagem
  A chuva não lavava a estrada dissolvia a substância do mundo uma corrosão lenta onde o homem entrou trazendo na mala couro gasto e cansaço buscando na recepção de um hotel de província a cirurgia impossível: extirpar o tumor da identidade.   O recepcionista nadava num aquário de tédio olhos aquosos empurrando o livro da lei.   No hiato entre a pergunta e o nome a vertigem do espaço em branco o abismo de poder ser ninguém.   Não foi de elite, nem esfarrapado, apenas um gatafunho ilegível no papel uma assinatura que pedia desculpa por existir um requerimento burocrático para a suspensão temporária do eu.   O quarto cheirava a histórias mortas intimidade prostituída a cada hóspede.   Sentado na cama que gemia como ossos velhos olhou as próprias mãos e estranhou-as como se pertencessem ao outro deixado lá fora o pagador de impostos, o vizinho, o marido, máscaras coladas à pele que, ao sair, arrancam a carne. ...

O muro invisível e a distinção de classes na obra de Pierre Bourdieu

Imagem
        Considerada por diversos estudiosos como um dos grandes pensadores sobre as temáticas sobre distinção de classes a obra de Pierre Bourdieu reflete o resultado de anos de investigação dedicados à formulação de uma teoria geral das classes sociais. Originalmente lançada em 1979, “A Distinção: crítica social do julgamento” estrutura-se em três partes principais, acompanhadas de introdução, conclusão e pós-escrito. A tradução para o português chega para suprir a demanda dos leitores brasileiros, oferecendo aportes fundamentais para diversas áreas das ciências humanas. A escrita de Bourdieu caracteriza-se por um refinamento denso, por vezes visto como elitista, mas que encontra justificativa em suas pretensões teóricas: conforme exposto em Questões de Sociologia (1983), o autor busca romper com a linguagem do senso comum e a filosofia social implícita no discurso espontâneo. No contexto de seu lançamento na França, o livro suscitou a primeira grande cont...

Os exilados simbólicos em “Diploma da brancura"

Imagem
                        O livro Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945), de Jerry Dávila, debruça-se sobre questões complexas acerca da intersecção entre raça e educação. A obra investiga como o sistema educacional lidou com a população negra nas primeiras décadas do século XX e de que forma o componente racial ditou o êxito ou o fracasso escolar. O autor analisa se as políticas públicas da época apenas refletiam ou ajudavam a moldar o racismo científico vigente, observando como as reformas educacionais entrelaçaram conceitos de raça, classe, nação e gênero.        Jerry Dávila, historiador nascido em Porto Rico e professor associado da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte, possui uma trajetória que inclui passagens como professor visitante na USP e na PUC-Rio. A obra originou-se de sua tese de doutorado na Brown University, orientada pelo ...