O Herói rascunhado

      


     O exercício da honestidade consiste no simples temor da possibilidade de uma eventual punição caso nossos atos ilícitos, sejam estes de maior ou menor nível de ignomínia cívica, seja evidenciado. Escutei de meu pai em certa casualidade, não lembro com exatidão qual afronta provocada e menos ainda a época, podendo aqui afirmar que tenha sido dentro da cronologia do período em que vigorava a adolescência, “caso faça algo errado, não olhe nos meus olhos, não irei na delegacia se lá estiver”, após escultar aquele ultimato, mais semelhante a uma condenação, percebi que minha bondade tem com alicerce o medo, com pouca porcentagem de qualquer conceito que abeirar-se do que entendo hoje sobre valores humanos. A vigilância e a punição, num pendular tênue, equilibrando vergonhas, sustentando a milenar ilusão humana entre o bem e o mal. Às vezes me debruço a pensar sobre “como seria o homem civilizado sem a vigilância e a punição”. Talvez um dia eu escreva uma narrativa ficcional sobre essa não tão peculiar observação.    

        Por mais desconexa com a lógica que o parágrafo anterior possa parecer, não deixa de ter uma ligadura com o breve relato a seguir. Dr. George de Castro, doutor, através dessa alcunha gostava de ser tratado. Com formação nas ciências jurídicas, mas apresar de ser portador de um certificado, não exercia a profissão de advogado. O motivo, a conclusão pessoal que era o pior jurista da cidade. Mas certo que por pior e mais preguiçoso que seja o advogado, alguma renda é possível extrair, advinda de casos com pouca relevância ou de pouca complexidade. Afinal, onde existir injustiça existira um honorário a ser pago. O segundo motivo, assunto a ser contado, mais irônico, sem deixar de ser, em fracionaria medida, trágico.   


   

   “O Homem que Pleiteava a Loucura”, foi o primeiro título que desabou quando o vi se aproximar, foi numa manhã de domingo, de suave frescor e inútil, dessas em que até os anjos cochilam entediados no alto das igrejas. O Doutor George de Castro, com todas as letras, embolsava para todos os pontos cardeais seus enfadonhos diálogos de bacharel em Direito com a plenitude de alguém que parecia flutuar na ideia que construiu sobre si mesmo. Tornou-se um especialista em cavar brechas na muralha esburacada da previdência social. Não era um marginal qualquer, desses que assaltam bolsos e bolsas na esquina. Longe disso. Era um habilidoso jurídico, desses que estudam o Código em profundidade e, de tanto estudar, aprendem seu averso, seus pormenores, sua frágil interpretação, transformando uma delinquência ilustrada num gesto de profunda compaixão.  

      Sua façanha maior — narrada por ele próprio, entre goles de saliva requentada e um sorriso lúbrico quando exaltava com qualquer façanha cotidiana — consistia em fraudar benefícios através da alegação, vejam só, de insanidade mental. Alegava-se vítima de uma comorbidade psiquiátrica intratável: "transtorno afetivo bipolar em grau severíssimo, com episódios psicóticos e surtos de natureza delirante". Palavras dele, ditas com a serenidade de um padre lendo a missa dos mortos. Trocava os nomes das pessoas, atribuindo-lhes outros, dissimulava assim ser afligido por lapsos de memórias. Fingia demência. Fingia amnésia. Fingia alucinações. Fingia o fingimento. E com olhos esbugalhados, fala desconexa, uma baba estrategicamente pendurada no canto da boca. O perito, pobrezinho, diante de tamanho espetáculo de insanidade simulada, sentia-se compelido a reconhecer-lhe a incapacidade total e permanente para o labor. Saiam os laudos, vinham os benefícios, e ele, no dia seguinte, já abria sua banca para advogar causas de aposentadoria, sempre sorridente, sempre saudável como um touro. E eu, que via tudo aquilo, me perguntava: onde acaba o direito e começa o teatro? Em que ponto um Habeas Corpus se transforma em monólogo de tragicomédia? Era um gênio da fraude, um Miguel de Cervantes das repartições públicas. Sabia recorrer, agravar, impetrar mandados como quem costura mortalhas. "Meu caro", dizia ele, "a lei é para quem sabe usá-la. Só é louco quem não sabe manejar um bom artigo 42 da Lei 8.213/91." E piscava, aquele miserável, como se compartilhasse comigo o segredo imundo da eternidade. No fim, confesso — com a vergonha tardia dos cúmplices involuntários. Porque no Brasil, saibam todos, o crime bem feito tem sua estética, sua liturgia e até seu heroísmo cínico. Se hoje ele ainda pleiteia sua loucura nos escaninhos da previdência ou se já surtou de verdade, não sei.

      Mas uma coisa é certa: entre os são e os insanos, O Doutor George de Castro foi o mais lúcido de todos. Tanto que é reconhecido como uma espécie de herói local: “herói invertido, herói torto, herói de rascunhado” ou algo do tipo. Sabe jogar com as regras da boa moral e dos códigos cívicos, manipulando-as para o bem ou delinquência. Desde que a verdade não seja detectada as senhoras Vigilância e Punição não incomodam. E quanto as vergonhas, estas sempre serão relativas.   



                                                                        As memória do centauro em 29 - 04 - 2025


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