A linha invisível
Dentre as incontáveis ideias desprovidas de
qualquer sentido que costumo, frequentemente, ter, (vezes no meu estado de
vigília, vezes no reino onírico) confeccionar um livro de narrativas sobre as
uma “invisível linha”, simbólica, para ser melhor entendida. Aqui é conveniente
mencionar que a chamadas “forças simbólicas”, que tanto regem nossas vontades,
decisões, comportamento, atitudes e conclusões, sempre serão um dos temas mais
abordados em qualquer conversa que venhas a ter quando o assunto for “distinção
de classe”. Essa “linha invisível”, que também pode ser imaginada como uma
parede, um portão, uma viela, a extensão de um buraco em trincheira, uma delineação
pintada no chão. Haverá quase sempre um elemento solido no qual esta força
invisível se apossará para então construir seus significados em nossas mentes. Não
nos esqueçamos que todas estas forças simbólicas fazem parte de complexas
estruturas, construída ao longo da evolução humana, e assim sendo, não fora
concebida em tímida solidão, mas, como acentuou em estudos evidenciados por
Bourdieu, seu alicerce concretado na cumplicidade dos grupos. Se projetamos
medo, phobos, ao objeto desconhecido, mesmo este não apresentado
qualquer ameaça a nossa integridade, talvez concluiremos que as razões deste
medo venham dessa força simbólica. Nos ensinam a temer isso ou aquilo outro,
aquele ou alguém mais adiante. Se lhe pergunta os motivos, irão responder que
não motivos, apenas que deva ser temido. E assim phobos se internaliza
em nossos inconscientes, uma entidade a controlar nos movimentos, paralisa
nossas pernas, trava os olhos, o coração a rufar, o sangue a gelar, a garganta
a secar, o ventre em angústia movediça. A “linha invisível” das narrativas que
componham meus livros, será ela própria, adquirida personalidade, etérea em
determinadas situações, plasmática em outras, concretas em algumas, a
personagem narradora.
Uma ideia, ou seu lapso, é a colisão de dois ou mais pensamentos. Quanto maior seu trafego, intensidade e velocidade, maiores serão a chances destes se chocarem. Alguns pensamentos são indeléveis, permanecem armazenados em nossa cognição espreitando seus cúmplices, outro que venha ao seu encontro para, então, juntos, como bons coletores de conhecimento e imaginação criativa substanciarem seu fruto. Mas se faz necessário também a boa observação, ponderada, das cenas cotidianas, das personas vivas, suas palavras, gestos e atitudes, arguindo sobre todos estes “o que realmente sou capaz de enxergar que não é revelado aos olhos”, pois nossos próprios olhos costumam mentir mais que as doce e gentis palavras que escultamos. Voltemos a “linha invisível” ou mais precisamente sobre a ideia de escrever um livro de pequenas narrativas sobre uma espécie de fronteira simbólica que separam classes sociais: aquele que possuem muito de um lado, aqueles que possuem apenas o suficiente em sua extremidade.
Encontrei Diogo Queiroz ressentimento.
Este tem como principal característica é um apego patológica as coisas que
possui: só consegue se comunicar os outros através das coisas de compra seja
carro caros, celulares, reside num condomínio tão elitista que a burocracia
para poder cruzar seus portões é tão minuciosa que provoca esmorecimento na
alma em quem tentar fazê-lo. É tomado por uma tenção nos nervos, seguido de uma
palidez na pele, olhos arregalam em pânico invasivo, braço e mãos tencionados,
como se tentasse refugiar-se na companhia de Phobos, talvez este seja
seu mais fiel e verdadeiro amigo. Phobos estará sempre ao lado de Diogo
quando se deparar com alguém que não possua as coisas que ele possui, ou
acredita possui-las: seus objetos e seu status, os lugares que seu dinheiro o
leva, os hábitos que cultiva, seus privilégios e as regras sociais que melhor
se adequa. Seu medo ao se depara com pessoas das classes sociais mais baixas é
tão proeminência que parece, ele próprio, tomado por uma força incontrolável,
evitando qualquer aproximação ou, no caso de estas for figura conhecida,
demonstre desconforto e insatisfação, não suporta preferencias sexuais que não
pertença a sua heteronormatividade, inferioriza qualquer tipo de manifestação
de cultura popular, seu racismo transbordando pelos poros. É claro que
indivíduos como Diogo sempre irá encontrar cumplicidade. As pessoas, em
considerável maioria, são assim como ele. A linha invisível tem poder e força
para regula-lo em sem conforto elitista. Irá mate-lo em seu ecossistema, a
salvo, seguro, confortável. Qualquer dissonância a este deve ser evitada,
corrigido ou excluída. Qualquer intruso no mundo das elites deve ser retirado e
devolvido ao outro lado da fronteira. É acometido por sintomas de algum tipo de
enfermidade que adquiriu durante seu processo de construção social. Seu corpo
paralisa numa somática perturbação na sua psique. Seu mundo: a proteção da
cabine de uma Hilux que custa seis vezes o valor de um carro popular novo (é
conhecido suas ambições de adquirir um veículo de valor mais elevado, e depois,
outro mais caro do que este último), relembrando um pouco o pensamento do
Lipovetsky, na contemporaneidade do hiperconsumo, quando mais caro é o produto que
o indivíduo adquire, maior será sua sensação de segurança, e mais protegidos
ele estará das ameaças que a “rua” possa dispor. Quem mais e melhor representa
esta “rua” do que as pessoas que nela transita, ou que nelas habitam.
Diogo é um dos personagens, de uma das
narrativas deste livro de pequenas histórias que concluir recentemente.
Histórias narradas por uma linha divisória. No caso do personagem Diogo, as
cenas são narradas pelo portão do condomínio de luxo no qual reside. O Portão
adquire personalidade: temperamento, sentimentos, questionamento ao observar os
passos de todos que entram e saem do condomínio. Sua consciência foi imaginada
seguindo as obrigações de sua função: silencioso, com apenas dois movimentos, o
de abrir e fechar. Mas sempre observando e descrevendo para o leito toda a
movimentação do personagem Diogo. O Portão sendo o elo que elenca o muro que
separa a “rua”, permeada de perigos, onde Phobos reside, do condomínio
seguro, onde há cumplicidade elitista. La dentro não há dissonâncias, tudo é
limpo, tudo é harmonioso para Diogo, e assim permanecerá até o findar de sua
vida, quiçá tudo continuará numa vida pós morte, ele a observar de sua
eternidade as coisas que tanto almejou possuir. Devo lembrar que podemos
encontrar muitos Diogos perambulando nos grupos elitistas. É um tipo que
comumente nos deparamos na trivialidade dos grupos que ostentam status
econômicos. Ancorado em seus objetos, sem pode deles se desprender por algumas,
o que dirá dias ou semanas, meses seria o castigo de uma condenação, e anos uma
quase morte. Diogo é tão cheio de objetos, mas tão esvaziado de sentidos. Se a
casualidade permitir talvez eu volte a falar sobre as outras histórias que
compõem este meu livro de narrativas da “linha invisível” que separa
simbolicamente as classes sociais. Pois sabe-se lá se conseguirei
publica-lo.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder
simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001ª.
_______.A distinção:
crítica social do julgamento. São Paulo/Porto Alegre, Edusp/Zouk, 2007.
LIPOVETSKY, Gilles. A era
do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP, Manole, 2005.
_______. A felicidade
paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo, SP, Companhia
das letras, 2007.
09.04.2024
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