As memórias do centauro

     Dos muitos flagelos que nos perseguem, o ato inconsciente da comparação com os outros sempre foi, é e será uma constante a ser ressignificada. Vista a violenta desolação que essa postura pode provocar quando reagimos de alguma maneira, é sempre pertinente lembrar dos episódios que tive a oportunidade de vivenciar.

       Acho que não foram poucas as vezes que relatei e que, assim como hoje, continuarei relatando casos em que me deparei com as barreiras simbólicas, invisíveis, que se manifestam no discurso coloquial falado e que, em muitos casos, não conseguimos detectar. Faço isso exaustivas vezes, quase uma obsessão em tom de patologia. Tudo o que é intangível e, em seus significados, nos escapa ao toque, de alguma maneira afeta nossa percepção sobre a maneira como somos interpretados. Não deveria isso fazer tanta diferença, mas, de uma forma ou de outra, nos afeta, excluindo o que verdadeiramente somos.

        A casualidade escolheu aquele dia. Costumava viajar para Campina Grande, interior da Paraíba, para tentar terminar um curso que nunca foi concluído. Em um determinado período, compartilhei a companhia de uma professora de língua portuguesa e literatura – amante incondicional de todas as formas e linguagens artísticas – que lecionava em uma escola de ensino privado cujos alunos se destinavam ao conhecido sucesso social, melhor desempenho escolar, melhores colocações em concursos e, consequentemente, funções sociais consideradas mais nobres, profissões privilegiadas: médicos, engenheiros, advogados etc. Não foi a primeira vez, e provavelmente não será a última, que alguém ficou surpreso ao ouvir que eu trabalhava em uma oficina de rebobinagem de motores elétricos. Aquele espanto gerou uma reação: “Acho que o mundo precisa mais de você ensinando em uma escola do que consertando motores”. Causou-me distinto incômodo aquela fala que, digo em acréscimo, exalava considerável carga de convicção. Afinal, desde os doze anos trabalho com isso, minha função para ganhar o pão dos dias subsequentes. É preciso ponderar que já estou acostumado a ouvir afirmações como estas.

       Costumo, mentalmente, construir formas para ressignificar algum tipo de insensatez que me ocorre vez ou outra. Imaginei como seria o mundo caso ocorresse uma paralisia de dois meses sem rebobinadores de motores elétricos. Numa breve especulação, talvez um violento caos se instalasse a princípio. Sistemas de saúde, fornecimento de energia, economia, fornecimento de alimentos e toda a logística para a sobrevivência humana seriam afetados. A realidade que relato: na década de 90, tive a oportunidade de vivenciar várias greves no sistema de educação pública, algumas com dois meses, outras com seis meses, mas todas contornadas com atividades compensatórias, algum trabalho que os alunos pudessem executar e que, ao ser entregue, gerava uma nota correspondente ao necessário para salvar a colação de grau do aluno, ou melhor dizendo, camuflar positivamente os números estatísticos. Consequências estas menos dramáticas do que a já ponderada paralisação dos rebobinadores de motores elétricos.

      Às vezes, minha "hiperfantasia" costuma construir lugares, ou realidades, onde posso me acolher de alguma forma.

  

                     21.03.2025

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