Sobre um livro
Raras foram as vezes que toquei no assunto:
narrar sobre os bastidores da publicação do meu primeiro livro. De fato, nunca
me perguntaram, ou nunca tive a chance de dizer algo a respeito, careci da oportunidade.
Mas aqui posso relatar um episódio dessa jornada. Na época o acesso a
informações sobre como funcionava o processo de editoração de um livro eram restritos,
pelo menos na realidade onde me encontrava. Trabalhava numa oficina, rebobinado
motores elétricos, o pouco dinheiro que conseguia era destinado a suprir as
necessidades básicas da casa, alimentação, energia elétrica, água, consultas
médicas para os dependentes, e o que sobrava, o pouco, usava para comprar
alguma peça de bicicleta, ou algum livro – sim, sempre tive esse hábito, quando
sobrava uns trocados comprava algum livro.
Não recordo com exatidão a construção da cronologia, o início, ano, mês, dia. Mas foi na infância que fui inundado por imagens de histórias, seus cenários e personagens. Algumas meras repetições que qualquer filme que eu tenha assistido em dias anteriores. Outras eram construídas tendo com base sonhos conturbados que costumavam me agoniar algumas noites, desconexos de qualquer realidade vista, com seres deformados, vaporosos, que despertava um fascínio e me instigava a debruçar-me em investigar o mistério que gerou aqueles sonhos. Talvez tenha sido nesse momento, nas tentativas de interpretar sonhos, que aforaram a ideia que criar narrativas. Talvez eu conte um pouco mais sobre esse momento biográfica em outras crônicas. Me afixo aos bastidores da publicação do livro, que, acrescento, ironicamente, não está muito distante de um fantasioso acontecimento ficcional.
Como havia relatando sobre a falta de
informação de recursos para planejar e custear a publicação do livro. “O
silêncio das vespas”, batizado com esse nome. Contos escritos em sua maioria
contaminados pelo impulso e empolgação. Talvez a vontade de ver o resultado do
processo criativo fosse bem maior do que o atestamento de sua qualidade. Também
perpassa nesse julgamento a quase patológica compunção do autoquestionamento:
“será que meus trabalhos literários são bons ou se sou uma figura medíocre como
confeccionista de textos literários”. Meu incurável “complexo de eterno
principiante” que sempre me assola quando concluo qualquer trabalho. Sempre
ressalto para mim mesmo o pensamento de um amigo escritor (talvez o único com
quem eu tenho a oportunidade de conversar sobre assuntos de criação literária)
que em ocasião de uma dessas conversa sobre esse meu automartírio, me confortou
com: “talvez esse seja um traço de uma pessoa comprometida com aquilo que faz”.
Mas continuando o relato de alguém que estava hipnotizado pela impulsividade.
Devo acrescentar aos relatos que também não contava com recursos financeiros
para pagar o valor ofertado pala editora, destas que publicam qualquer coisa
que o cliente assim desejar que seja publicado, que vai desde livros de ‘poesia
de quinta-categoria’, passando por livro mensagens religiosas, culinária,
biografias familiares, emulações de Augusto Cury e etc. A solução para esse
entrave: sucata de cobre. A vantagem de trabalhar como rebobinador de motores
elétricos é que no processo de limpeza a fiação queimada é deixada pelo cliente
para descarte, pois ninguém leva para casa fiação de cobre para sucateamento.
Devidos ao considerável valor do metal avermelhado era viável para mim
guarda-lo, e juntar até completar um montante que compensasse ser vendido. Como
numa espécie de poupança, quatro anos acumulando resultou em cento e trinta
quilos de fiação cobre. Que ao ser vendido, arrecadaria o montante cobrado pela
editora.
Era uma manhã escurecida de sábado
quando eu e meu irmão partimos para Recife. Ele precisava comprar sucata de
“ferro gusa”, o mesmo que são utilizados na fabricação de transformadores de
energia. E eu iria vender minha sucata de cobre. O local da compra de um e
venta do outro era o mesmo: “Ferro Velho Grilo do Coque”. Tem esse nome porque o
apelido do proprietário era “Grilo” e se localizava na “Favela do Coque”. Poderíamos
ter escolhido um ambiente menos adverso, visto que “o Coque”, como é conhecida,
se trata de um dos bairros periféricos mais violentos de Pernambuco. Já estava
acostumando com o tipo de violência que lá vigora e que aflige os oradores locais,
mas iriamos meu irmão iria desfrutar do melhor preço para compra do ferro gusa,
e eu arrecadaria pela fiação de cobre um lucro mais generoso. Grilo era um sujeito
receptivo: gostava de ouvir as histórias dos seus clientes do interior,
compartilhava conosco seu cotidiano como se fossemos figuras pertencentes a
este. Talvez nos tratasse com exagerado cordialidade por causa dos nossos
semblantes de personas ingênuas que sempre aparentamos ter. É claro que sabíamos
quem de fato Grilo era: traficava armas e as negociava com a marginalidade recifense
ou com quem assim intentasse possuir uma. E seu “Sucatão” era apenas uma fachada,
se ganha mais dinheiro negociando armas do que ferro-velho. Era acobertado pela
MP que, para sua placidez, colocou uma garita de pacificação vizinho ao sucatão.
Cobre pesado. Pagamento no bolso. Ora de zarpar e sair daquele lugar. Sabíamos que
aquela balança estava adulterada, mas quem iria cavar discórdia com um negociador
de armas... e a resposta para essa indagação era óbvia.
Foi assim que consegui o dinheiro para
publicação de “O silêncio das Vespas”. Em meus martírios pessimistas, repletos
de casualidades trágicas, permeados por “e se...”, imaginei: e se a polícia
resolvesse deflagra alguma operação de captura e apreensão de armas, e se Grilo
nos interpretasse com alguma de suas desavenças locais, e se esboçássemos qualquer
insatisfação com o valor pago pelo cobre... intuitivamente, como a
autopreservação nos orienta, nunca mais retornamos aquele lugar. Não só pelo pessimismo,
mas porque poucas semanas depois daquela ida, Grilo, enquanto desfrutava de uma
partida de futebol num campinho de chão batido, foi executado a tiros por uma criança
de nove anos. Alguém colocou uma pistola em sua mão. Primeiro uma série de
disparos nas costas e depois, antes de Grilo interpretar o significado dos frêmitos,
seu corpo desabou sobre a terra seca chapiscada de sangue. O menino aproximou calmamente
do corpo estendido e executou uma segunda série de disparos, para conferir a eficiência
do ato.
As vezes me pego lembrando quando tinhas a mesma idade desse menino. Deleitava-me assistindo o seriado do “Kojak”, sobre detetive que usava um sobretudo marrom, investigava e solucionava crimes. Primeira vez que assisti o filme “O enigma da pirâmide”, uma ficção sobre o personagem Sherlock holmes em sua juventude, que por semanas inundei tímpanos dos meus amigos com reconstituições orais sobre as cenas do filme. Planejava em minha inocência: quero ser uma mistura de Kojak e Sherlock Homes quando crescer. Para minha frustração, nunca me tornei. Quanto minha concepção sobre crimes, sou assolado com questões: o que teria levado a fazer uma criança de nove anos a executar uma pessoa, e depois da execução, uma reticência, o que teria acontecido com o menino... meu imaginário irônico e pessimista dirá “e se Grilo foi executado com a mesma arma que negociou”
03 - 07 - 2025
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