Anômalo Social

 

         Dentre os muitos valores de convivência social, a prudência sempre foi uma orientadora que teimo em negar-lhe a devida atenção. irá nos instruir a deixar as fatalidades e desventuras passadas onde sempre pertenceram: na caixa dos objetos obsoletos, trancados com cadeado enferrujado, colocado na estante das coisas entediantes, na prateleira mais inascível, com o seguinte concelho, que relembras experiências passadas apenas serve para evitemos repeti-las, mesmo que muitas vezes insistamos em sermos criaturas que repetem erros (é mister para mim relembrar as sensações e os momentos que vivi, desligar-me do presente e retornar a essa inexistência chamada passado, me transporto despudoradamente ao escutar cinco ou seis notas de qualquer melodia de qualquer música da época, um soundtrack para cada lembrança, mergulho nesse voluptuoso estado da pedra, morto para o tempo presente, e onde o eterno carrasco dos valores humano é incapacitado de concretizar sua execução). 

        “Anómalo social”. Acordei em esquecida manhã com essa nomenclatura inflamando a mente. Como o costume maquina, anotei-a, assim como as muitas outras. Sabia que os motivos sua repentina chegada, num momento oportuna, seriam devidamente esclarecidos, que teria uma explicação, significados, dissertações, ensaiada seja em qual contexto fosse. Enfim. Seria finalmente uma nomenclatura com sentido e utilidade (estranhamente as palavras e expressões me surgem antes do seu significado e possíveis atribuições). Posso aqui adiantar-lhes sua gênese com um breve relato.                          

        Nos primeiros anos do ensino fundamental, quando, por mando e desmando das regras do contrato social, comumente expresso “via das regras para uma melhor aceitação social”, caiu sobre minha cabeça o estranho fato de que deveria, daquele momento em diante, repetir e reproduzir tudo aquilo que os professores expunham na minha frente. Era um fracassado nato nestes dois quesitos: desatento ao tentar captar o que os professores tentavam transmitir para classe e, pior ainda, fracassava majestosamente ao reproduzir qualquer assunto ou atividade que estes, laboriosamente, no pediam. Em compensação, era atordoado por um mistério: quando um determinado assunto despertava meu interesse costumava nutrir-me deste com truculenta e faminta dedicação, negligenciando ate mesmo as refeições, qualquer outro assunto ou atividade que não pertencesse ao reino daquele objeto investigado classificava-o como distração inconveniente. Enquanto em outras tarefas, aquela que não despertava meu interesse, pesava-me um esmorecimento anuviado ao serem praticadas, com uma considerável fração de morosidade aos tentar reproduzi-las. Mencionei a palavras “mistério” porque assim sempre o foi, sem uma explicação imediata para tentar lidar. É claro, todo mistério existe para atender a uma necessidade básica dos seres humanos, saciar a voraz curiosidade em desvenda-lo. Um curioso de nascença, faminto por questionar e conhecer, jamais negaria a possibilidade de embarcar a fantástica jornada em desvendar a natureza e a fisiologia da criatura que se esconde atrás da porta. Aquele cuja resolução insiste em permanecerem ocultas, aqueles que não deixam pistas, sintomas, efeitos percebidos, sensações sentidas, ansiedade que nos tire de nosso estado conservado e estagnado para em seguida, com um respira de vitalidade nos direcione na direção desta nebulosa criatura que em dado instante nos escapa, em outro estamos prestes a toca-la, tendo algumas à sorte de nos desviara no decorre de uma vida, ate chegar o momento que nos deparamos encarando-a, frente a frente, e descobrimos: somos nós. Se esse fenômeno invisível carecer dessas características não deve ser chamado de mistério, mas sim como “medo inconsciente”, advindos das crenças que desde no terá idade nos são impostas, ara serem cultivadas. Germinam e brotam ate culminar no nascimento das criaturas das angustias. Acreditem. São mais fáceis de serem domesticadas, pois não requer o questionar, nem o conhecer. Pois é mais fácil reproduzir e replicar o que já existe, do que mover-se na laboriosa jornada das descobertas.

Abstração - E. Moura.

       Onde parei mesmo?! Lembrei.  “O anômalo social”. Nomenclatura que inventei para designar aquelas pessoas que percorrem toda uma vida, ou, parte dela, carregando consigo algum tipo de problema. Um mal indizível que irrompe, sorrateiramente, situações mais cruciais e definitivas em nossas vidas. Poderias aqui construir uma lista, mas irei me ater apenas em algumas que experimentei: dependendo das procedências e o tipo, sons contínuos e ruídos inocentes me causavam inquietações, sons amplificados exageradamente (intrusivos) me devastavam ate corroer os ossos, com um explosão de irritabilidade frenética, quase incontrolável escorrendo através de discretas lágrimas. Com o felicíssimo alivio que tal devastação nos tímpanos e o psicológico quando ao som das músicas prediletas (raros os dias que não as escuto) esta sintomática era inexistente. Como se outra criatura, desgarrada de minhas vontades, que me abitava jugasse quais sons seriam audível ou tortuosamente rejeitados. Como um anômalo social que era, os rótulos de “comodista chato ou doente dos ouvidos” pesavam-me a quase todos os momentos. Isso levava-me a conter, em emburrado silêncio, todos as minhas misteriosas insatisfações como as atmosferas de ruídos amplificados. Visto que essa era o único método para me enquadra nas esferas de harmonia social. Também evadiam-me em profunda inibição, uma timidez angustiante, que me paralisava todos os veios de nervos que me constituíam, constantemente procurando a minhas volta alguma fresta para esgueira-me, uma vontade de  misturar-me as penumbras que surgissem pelo caminho (devo aqui admitir que eram justamente esta a característica do anômalo social que me abitava melhor me presenteou). Ensaiava ali, naquela criatura permeada de estranheza, meu universo questionador, e a ponderação sobre o verdadeiro valor de uma postura meditativa, universos era engenhado. O colateral dessa inibição truculenta: uma desarmonia com as regras vigentes. Simbolicamente, é proibido trancar-se em demasia em si mesmo, e o veredicto será sempre uma associação com o excêntrico intolerável. Se existia uma compensação, algo para contrastar a sonambula inibição?! Claro que havia. Surtos de freneis, imperceptivelmente eufóricos. Tão indesejáveis quanto repulsivos. Sim. O anômalo social que me abita nutria dessa ambiguidade.

           A senhora casualidade me colocou perante uma especialista em transtornos na formação cerebral (aqui, via de regras científica, me recuso a usar os termos “’doença’ ou ‘mental’”, visto que a palavra doenças tem como caracteriza a transmissão, e o desvio em questão vigora na formação das confecções cerebrais e não na construção da mente). Silvania. Numa breve e despretensiosa observação, creio que para uma profissional como ela, em continuo processo de especialização, analisando e diagnosticando diariamente levas de indivíduos portadores dos mais variados tidos de transtornos, não sentiu muita dificuldade em tecer uma breve conjectura sobre os salientes aspectos que me permeavam. Delineou seu empirismo em meus meneios, gesticulações, mímicas, acenos – olhos, braços, caminhar, tom de voz.  Não poupou misericórdia ao disparar seu diagnóstico: “tem traços de um TDAH com grau leve de autismo”. Até aquele paragrafo da minha vida, nunca tinha demandado qualquer interesse sobre esses dois temas. Mas o grande mistério, este que agora a pouco, dissertei em algumas linhas, teria desvendado. O anômalo social que abitava aqui dentro, caótico e misterioso, ganhava identidade. Deixou de sê-lo para se tornara um TDAH e Espectro do Autismo, e, consoante às regras que criei: só se pode permanecer embrionado no mundo dos anômalos sociais quando ainda não se desvendou a identidade da criatura. Devo aqui elencar que desvendar esse mistério, mesmo em avançada idade não me causou alvoroço emocional. Provavelmente me acostumei a conviver com essas desarmonias. Habituei-me em ser um personagem de mim mesmo, visto a quantidade de camadas cênicas que tive roteirizar para pode transladar entre as harmonias vigentes.

        Acompanhei do transladar entre as décadas: final de 70’s para 80’s, seguida a de 90’s arrastando pelas entediantes subsequências 2000’s. Cada uma destas tinha seu produto psicológico para oferecer aos seus intrépidos consumidores: o otimismo de um futuro exagerado misturado com frustração de perceber que esse futuro, dentro de uma concretude, se revela como uma imensurável paisagem sem perspectivas, assim as musicas do “The Cure” (devo confirmar que essa sensação é uma das minhas prediletas) “a melancolia soft” ainda hoje degusto em consideráveis miligramas; mas ai com advento dos antidepressivos, ansiolíticos e neurolépticos, tudo condimentado com “Nirvana” é temos ai um novo produto, a depressão ou qualquer outra afecção provocada por transtornos ansiosos se tornou modal, a classe média começou a achar “legal” pessoas que findavam a própria existência (ainda hoje essa moda perdura); um bom profissional de marketing deve ter sempre cartas valiosas na manga, e o produto do momento são os transtornos mentais (desta vez não tem banda), observo todos torcendo para receber algum diagnostico de autismo ou TDAH, grande parte do meio corporativo requisitando e contratando profissionais que carreguem consigo estes transtornos, sendo embalados pelas mãos coachs trades quânticos.

        Devo aqui mencionas o quão é desoneste intelectualmente irresponsável essa atual moda dos transtornos. Visto que todos anseiam fazer parte do harmonioso. Em verdade concreta ser um anômalo social sempre será evitável. As melhores cartas que os profissionais em marketing das massas, as mais lucrativas, serão sempre aquela que melhor aproximação com o sadismo ou com masoquismo. Inconscientemente, fetichizar o sofrimento sempre será o que mais nos distancia das outras espécies. Inconscientemente, o autoflagelo, seja emocional ou físico, foi cuidadosamente pasteurizado, condimentado com acidulantes, aromatizantes, conservado e condicionados em belas embalagens, tipos, formas cores variadas, preções convidativos, expostos nos mostruários físicos ou virtuais para quem queira adquiri-los. Devo admitir que desvendei sobre a identidade do anômalo social que me habita. Mas este pode não passar de uma mera película. Ele sempre esteve aqui. Sua fisiologia nunca desprendeu-se. Ainda sou atormentador por aquelas vastas paisagens imaginadas, questionadoras e pessimistas. Contemplo nelas novas fantasias humanas, novas tendências: iremos fetichizar sobre os cegos, os aleijados, os suicidas, os amputados, os crucificados, os famintos, os desprezados, os brutalmente assassinados, os castrados, os torturados, os enfermos. Todos estes estarão na prateleira. Mas imputo esta última análise a minhas desatinadas especulações criativas. Alias. Estou enganado. Subtraindo as prateleiras, estes produtos sempre existiram, inconscientemente.   


                                                                                    Em 15. 02. 2024                   

                  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Liceu Cândido Cruz

Estruturas "bem" estruturadas