As coisas e os seres

         Algumas cenas me comovem; outras despertam repulsa; tantas mais apenas observo. Mas existe determinada porcentagem, estas na qual me debruço em rememora-las com ingênua obsessão sempre que me deparo com outra cena com semelhante significado, as cenas que despertam algum tipo de questionamento sobre nossa configuração como humanos habitantes da cronologia presente. Creio que todos carregam algum tipo de obsessão: em maior ou menor grau, patológicas ou restritas aos pensamentos. Encucar com cenas é minha perdição, perdi a esperança se algum dia amenizo de alguma forma. Lamento. Se questionar fosse função socia, e o “questionador” um profissional remunerado. Talvez hoje tivesse desfrutando de algum tipo de conforto financeiro.  

      “Casa das bolças” não tinha esse nome na fachada, mas era assim que todos a chamavam. Vendia, como apropria alcunha orienta, bolças de tantos formatos, modelos, características, consciência, que melhor ornamentam seus clientes. Sua proprietária, que desfrutava de robusto prestígio entre os comerciantes de Sta. Crus do Capibaribe advindo ao patrimônio acumulado, tanto em extensão quanto em valor. Entrei nessa loja para perguntar sobre o valor de uma mochila exposta na vitrine. Me deparei com ela logo no balcão de atendimento, ao lado de outras três funcionárias. Carrancuda e opaca, presa a uma cadeira de rodas, contava o dinheiro que pousava na sua frente, concentrava-se em conferir valores recebidos e repassar o troco. Mas algo me surpreendeu de várias maneiras: além da cadeira de rodas, um suporte com soro com bisnaga e tubo flexível conectado al seu braço. Seja qual for a comorbidade que ela possuía, parece não a impedir de manipular o fluxo de dinheiro do caixa. Com a epiderme desbota, os olhos são fendas esgotadas, os dedos vivos, febris, percorrendo as cédulas, digitando códigos bancários com a destreza de um maestro regendo uma sinfonia, como movimentos leves e sinuosos. Uma das atendentes que estavam ao seu lado sugere repouso, e ela o afasta com um meneio altivo, como se mandasse calar um servente que ousou interromper sua audiência real. Repouso? Ora, e quem zelaria pelo fluxo de caixa? Acaso deus se prestaria a essa insignificante burocracia terrena?  Fala de taxas, de exames, de perigo iminente. Ela escuta com a indiferença de quem avalia uma proposta de negócio falaciosa. "Vamos rever isso depois", murmura, enquanto rabisca anotações num bloquinho que parece pesar mais que sua própria existência. "A senhora precisa repousar", insiste a gentio funcionária. E ela sorri. Mas não é um sorriso comum. É a mescla perfeita entre triunfo e escárnio, o mesmo sorriso que se abre quando um contrato milionário é assinado. "Descansar é para os fracos", sentencia. 


       Cresci e amadureci observando as mudanças de postura das pessoas quando estas passam a possuir mais coisas que outras. Aqui me refiro a “coisas” que possam representar algum tipo de capital, sejam em substância vista, sentidas ao toque e que podemos guarda-las em local de preferência, ou as invisíveis, as que afetam nossa pisque através de abstrações de poder. Visto que ambas carregam sua essência ilusória e nada podemos contra a não ser aceitar a regra social-civilizatórias de que somos definidos pelas “coisas” que possuímos.  

      “As coisas e os seres”. Talvez seja esse o nome de um futuro livro de histórias, caso esteja vivo. Narrará o cotidiano de personagens que são tão obcecados por respectivos objetos de desejo, no qual terão como desfecho a transformação, metamorfose, nesses mesmos objetos: o sujeito que se transforma numa casa, a mulher transmuta para um vestido, a universitária que se transforma em seu diploma e etc. Provavelmente está não seja uma ideia tão original, mas gostaria pratica-la algum dia, quem sabe o resultado seja satisfatório ou agradável para quem ler.    

      As veias estufam, e não sei se é efeito do soro ou da última transação financeira bem-sucedida. Observo-a, fascinado e aterrorizado. Que criatura é essa? Um ícone da perseverança ou um epitáfio ambulante? A morte lhe ronda, espreita-a com a paciência dos cobradores de impostos. Mas não é a doença que a mata. É a vida. E pior: uma vida sem interlúdios, sem silêncio, sem pausa. Talvez, no dia de seu velório, depositem-lhe nos dedos exangues um maço de notas frias, para que parta serena, embalada na ilusão de eternidade dos balanços contábeis. Ou talvez, no último fôlego, com a voz trémula e os olhos encovados, ela murmure sua derradeira prece: "Quanto deu o fechamento do mês?".   

      Já sei! Em meu livro “As coisas e os seres” colocarei uma personagem que se transforam na maquineta de crédito∕débito $.  


04 - 04 - 2025

  


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