Sem deixar rastros

 

A chuva não lavava a estrada

dissolvia a substância do mundo

uma corrosão lenta onde o homem entrou

trazendo na mala couro gasto e cansaço

buscando na recepção de um hotel de província a cirurgia impossível:

extirpar o tumor da identidade.

 

O recepcionista nadava num aquário de tédio

olhos aquosos empurrando o livro da lei.

 

No hiato entre a pergunta e o nome

a vertigem do espaço em branco

o abismo de poder ser ninguém.

 

Não foi de elite, nem esfarrapado, apenas um gatafunho ilegível no papel

uma assinatura que pedia desculpa por existir

um requerimento burocrático para a suspensão temporária do eu.

 

O quarto cheirava a histórias mortas

intimidade prostituída a cada hóspede.

 

Sentado na cama que gemia como ossos velhos

olhou as próprias mãos e estranhou-as

como se pertencessem ao outro deixado lá fora

o pagador de impostos, o vizinho, o marido, máscaras coladas à pele que,

ao sair, arrancam a carne.

 

No jantar, a penumbra era cúmplice.

 

Vultos silenciosos, peregrinos do nada

caminhando para um inferno ou para Compostela

o destino pouco importa quando a origem é a ferida.

 

O desconhecido à frente sorvia a sopa como um turíbulo

e na troca de banalidades, o teatro de sombras:

Férias? Sim.

Do trabalho.

Mentira.

Férias de si mesmo.

Mas a verdade é um vidro que corta a língua.

 

Não há alfândega que confisque a memória

nem fronteira que detenha a culpa.

A estrada torna-o anónimo aos olhos alheios,

mas dentro, o ruído é ensurdecedor, um coma vígil

um branco atravessado por picos de dor.

 

Liso como um seixo

amarrotado nas extremidades da alma

carregando o parasita da consciência que impede o doce alívio da inexistência.

 

A noite trouxe a sentença.

 

O bilhete de volta sobre a colcha

coordenadas de uma prisão com hora marcada

a garantia do retorno à farsa habitual.

 

Mas o fardo da existência pesou mais que o medo.

 

Com gestos de ritual profano

rasgou o papel em dois, em quatro, em mil,

neve suja caindo no chão de madeira podre.

 

Não haverá regresso.

 

A estada alhures fez-se domicílio perpétuo.

 

Apagou a luz, e antes que a escuridão lhe tomasse a forma

deixou de ser.

 

Lá fora, a chuva continuava, e um fantasma sem nome

trémulo e livre

deu o primeiro passo para dentro do seu próprio desaparecimento.



                                                          Do livro de poesias “sinfonia para cães suicidas” 



"Exílio" - E. M. - 2017 


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