Os exilados simbólicos em “Diploma da brancura"
O livro Diploma de brancura: política
social e racial no Brasil (1917-1945), de Jerry Dávila, debruça-se sobre
questões complexas acerca da intersecção entre raça e educação. A obra
investiga como o sistema educacional lidou com a população negra nas primeiras
décadas do século XX e de que forma o componente racial ditou o êxito ou o
fracasso escolar. O autor analisa se as políticas públicas da época apenas
refletiam ou ajudavam a moldar o racismo científico vigente, observando como as
reformas educacionais entrelaçaram conceitos de raça, classe, nação e gênero.
Jerry Dávila, historiador nascido em
Porto Rico e professor associado da Universidade da Carolina do Norte em
Charlotte, possui uma trajetória que inclui passagens como professor visitante
na USP e na PUC-Rio. A obra originou-se de sua tese de doutorado na Brown
University, orientada pelo brasilianista Thomas Skidmore. Publicado
originalmente nos EUA em 2003 e posteriormente traduzido para o português, o
estudo foca na relação entre raça e políticas educacionais da Primeira
República ao Estado Novo. Para fundamentar sua pesquisa, Dávila recorreu a um
vasto acervo documental que inclui legislação, censos, imprensa (tradicional e
negra), relatos pessoais, correspondências e fotografias.
A tese central do livro sustenta que a elite
intelectual — composta por médicos, cientistas sociais e educadores — apostava
na escola pública universal como um instrumento de "embranquecimento"
da nação. Influenciados tanto pela eugenia internacional quanto por
interpretações locais sobre os problemas sociais, esses gestores viam a
população pobre e não-branca como degenerada. Acreditava-se, contudo, que essa
condição, decorrente da falta de saúde e cultura, poderia ser revertida. O
Estado, através da ciência e da educação, teria o papel de "curar"
esse povo, transformando-os em cidadãos exemplares através da imposição de
padrões de brancura, seja na higiene, no comportamento ou na cultura.
As políticas educacionais desse período, lideradas ou apoiadas por figuras como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Edgar Roquette Pinto, apresentaram uma dualidade. Embora tenham ampliado o acesso ao ensino público, beneficiando grupos marginalizados, elas simultaneamente reforçaram estigmas. Estudantes negros e pobres eram frequentemente rotulados como intelectualmente limitados ou problemáticos. Dávila argumenta que a expansão do ensino serviu também para reproduzir desigualdades, sugerindo que a meritocracia da época se baseava em critérios subjetivos que pressupunham a inferioridade desses alunos.
A estrutura do livro compõe-se de seis
capítulos. O primeiro aborda a crença da elite na educação como solução para o
"problema racial". O segundo examina a fusão entre estatística,
Estado e nacionalismo após 1930. O terceiro capítulo destaca que a expansão do
ensino não favoreceu igualmente os afrodescendentes e aponta como a seleção de
professores foi influenciada por vieses de raça e classe. Um ponto alto é a
análise visual feita pelo autor: comparando fotos de 1911 e 1946, nota-se um
evidente "embranquecimento" do corpo docente no Rio de Janeiro,
sugerindo uma exclusão gradual de professores pretos.
Os capítulos finais tratam das reformas
de Anísio Teixeira no Rio de Janeiro e o período subsequente, marcado pela reação conservadora
católica. O autor nota que, independentemente do espectro político
(progressistas ou conservadores), as elites mantinham visões semelhantes sobre
raça e nação. O livro conclui demonstrando como o ensino secundário,
exemplificado pelo Colégio Pedro II, servia para inculcar valores de brancura
em uma minoria aspirante à ascensão social.
Por fim, o estudo mostra que
personalidades como Heitor Villa-Lobos, Gustavo Capanema e Gilberto Freyre
operavam sob a lógica da superioridade da "raça branca", entendida
aqui não apenas biologicamente, mas culturalmente. Prevalecia a metáfora de que
o Brasil tinha um passado negro e um presente mestiço, mas caminhava para um
futuro branco. Villa-Lobos, por exemplo, vinculava a negritude a vícios e
rebeldia, enquanto associava a brancura ao progresso e à coragem.
Dávila ressalta que seu objetivo não é
emitir um julgamento moral sobre figuras como Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto
ou Fernando de Azevedo. O intuito é compreender de que maneira suas teorias
moldaram as instituições e as práticas políticas da época. Movidos pelo desejo
de "europeizar" o Brasil e associando a modernidade à brancura, esses
educadores estruturaram um sistema escolar onde as normas e as recompensas eram
definidas por critérios racializados. Nesse contexto, ser "branco"
era sinônimo de possuir saúde, cultura e alinhamento com a ciência.
A escolha do título, Diploma de
Brancura, não foi acidental. O autor inspirou-se em uma matéria da revista Veja
do ano 2000, que discutia como indivíduos poderiam ser socialmente percebidos
como brancos, independentemente da cor da pele. Para Dávila, esse conceito
reflete a mentalidade dos reformistas educacionais do entreguerras: a escola
seria o veículo para transmitir saúde e cultura, elevando a população à
condição social de brancos.
Retornando à questão central — a
importância de analisar as relações raciais via educação —, o autor argumenta
que o sistema escolar foi o principal laboratório onde especialistas tentaram
forjar uma nação "branca". Como política pública, a educação traduzia
teorias abstratas em práticas reais. Mais do que isso, ela expõe a ambivalência
do racismo à brasileira: embora a raça determinasse o destino de milhões, a
exclusão não era explícita, mas camuflada por discursos médicos e científicos
sobre "degeneração".
A conclusão de Dávila é que a elite
intelectual embutiu hierarquias raciais nas políticas educacionais, mas o fez
sob o manto da neutralidade técnica e da meritocracia. Superficialmente, essas
medidas não pareciam discriminatórias, o que tornava seus efeitos ainda mais
perversos: elas criavam barreiras invisíveis à integração do negro,
dificultando a contestação da injustiça inerente ao sistema, uma vez que seus
mecanismos de exclusão eram sutis.
A mensagem de Diploma de Brancura é
inquietante. O estudo demonstra que o sistema escolar, da Primeira República ao
Estado Novo, foi integralmente atravessado por marcadores de raça, classe e
gênero — desde o currículo e a seleção de professores até as normas de higiene.
Mesmo que houvesse debates sobre o determinismo biológico, existia um consenso
sobre a brancura como ideal civilizatório.
Isso
tornava o sistema racista? Se utilizarmos a definição norte-americana, baseada
na segregação legal e na hostilidade aberta, a resposta seria não. Contudo,
Dávila afirma categoricamente que a escola brasileira foi estruturalmente
excludente, limitando as oportunidades de crianças negras e servindo para
legitimar e perpetuar as desigualdades entre brancos e negros no país.
A obra, contudo, não está isenta de
fragilidades. A primeira delas refere-se ao recorte geográfico: embora o
subtítulo sugira uma análise de abrangência nacional ("Brasil") e o
autor faça menções pontuais a outros estados, o estudo concentra-se, na
prática, quase exclusivamente no Rio de Janeiro. Há também imprecisões
metodológicas no manejo das fontes. Na tentativa de fundamentar argumentos
sobre o cenário carioca, Dávila por vezes recorre a evidências de contextos
distintos. Por exemplo, para ilustrar a autopercepção racial de professores no
Rio, ele utiliza dados referentes a Campinas (SP). De modo similar, para
corroborar a tese do desaparecimento dos professores negros na capital, cita um
discurso de Miguel Barros, liderança negra de Pelotas (RS), proferido no
Recife.
Outra lacuna significativa é a
ausência de uma explicitação clara do arcabouço teórico-metodológico. Em um
campo onde o diálogo entre teoria, conceitos analíticos e evidências empíricas
é considerado fundamental para a produção do conhecimento histórico, o autor
opta por não detalhar seus pressupostos epistemológicos. Essa postura, vale
ressaltar, não é exclusiva de Dávila; é uma característica recorrente entre
historiadores brasilianistas, que frequentemente privilegiam a interpretação
documental em detrimento de debates teóricos mais densos.
Apesar dessas ressalvas, a força e a
qualidade do trabalho permanecem inabaladas. A publicação de Diploma de
Brancura mostra-se extremamente oportuna, surgindo em um momento de intenso
debate sobre a questão racial no ensino brasileiro. O livro torna insustentável
qualquer negação de que as políticas públicas educacionais no pós-Abolição
prejudicaram sistematicamente a população negra, gerando e perpetuando
desigualdades profundas. Visto que a função da História não deve se limitar a
uma contemplação passiva do passado, a obra reforça a imperiosa necessidade de
medidas compensatórias concretas no presente para corrigir tais distorções
históricas.
DÁVILA,
Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945).
Trad. Claudia Sant'Ana Martins. São Paulo: Editora Unesp, 2006.

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