O tempo do exilado

Testemunho meus gestos alheios a este rosto.

 

Folheio essas páginas sujas,

sinto o sorriso trincar-se em silêncio sob o ruído das vozes na sala.

 

Neste frio imune às horas,

neste exílio onde os dias não penetram,

descubro que jamais existi.

 

Sou carcaça deserta.

 

Sou feito de carne que o tempo apodrece.  

 

Sem ontem, sem amanhã.

 

Um espectro oco,

arrancado do mundo,

banido da história que juraram ser minha.

 

Encaro essa liberdade que apavora e vigio.

 

Espero pela palavra que não conheça a derrota,

pelo verbo capaz de inaugurar o agora e remendar a cronologia feita em cacos:

do ponto de afetos, a tessitura divina.

 

...

 

Olho para estas mãos:

movem-se sozinhas.

 

Leio,

enquanto meu riso se desfaz,

frágil diante da conversa dos outros.

 

Há um gelo aqui que o tempo não toca,

uma estase que me confessa:

a vida nunca me habitou.

 

Esvaziado de tudo,

sou um demônio sem memória ou destino,

cortado do laço humano,

lançado para fora da minha própria biografia.

 

Conheço agora a atroz liberdade do nada.

 

E aguardo.

Aguardo a linguagem virgem,

invicta,

aquela que funde uma nova duração e costure os trapos do tempo rompido: fio de afeto,

fio sagrado.

 

Do livro de poemas: “Sinfonia para cães suicidas”


"Sonâmbulas" E.M. - 2017


 

 


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