O Silêncio do Concreto na Caating

 

       Uma Leitura Fenomenológica de Tadao Ando no Sertão Nordestino

 

"A arquitetura deve permanecer em silêncio

 e deixar que a luz e o vento falem."

 Tadao Ando

 

 

O Encontro de Dois Silêncios

 

     A arquitetura de Tadao Ando é, essencialmente, uma arquitetura de paradoxos resolvidos: a massa pesada que flutua, o modernismo técnico que evoca o arcaico, e a influência ocidental (Le Corbusier, Louis Kahn) filtrada por uma sensibilidade oriental (o Ma, o vazio). Ao propormos a transposição hipotética dessa linguagem para o polígono das secas brasileiro, não estamos sugerindo uma colonização estética, mas um encontro de silêncios.

       De um lado, temos o silêncio introspectivo do Zen-budismo, que busca no vazio a plenitude; do outro, o silêncio vasto, opressivo e resiliente do Sertão, descrito por Euclides da Cunha em Os Sertões não como um vazio de ausência, mas como uma presença geológica esmagadora. Este ensaio postula que a ética material de Ando, sua recusa ao ornamento e sua busca pela "essência”, encontra um paralelo antropológico na figura do sertanejo e na paisagem da Caatinga: ambas despidas de supérfluos, ambas definidas pela resistência.

 

A Tectônica do Abrigo: O Concreto como Nova Taipa

 

      Kenneth Frampton, em sua teoria do Regionalismo Crítico, clama por uma arquitetura de "arrièregarde" (retaguarda), que resista à homogeneização da cultura global através de uma resposta tátil e tectônica ao lugar. No Sertão, a arquitetura vernacular historicamente utilizou a terra crua (adobe, taipa de pilão) para criar paredes espessas com alta inércia térmica, capazes de atrasar a penetração do calor diurno para o interior da habitação. O monólito de concreto de Ando deve ser lido, neste contexto, como uma evolução tecnológica da taipa.

      Inércia Térmica: As paredes de concreto armado de Ando, frequentemente duplas ou maciças, funcionariam como um escudo térmico formidável contra a insolação equatorial. Diferente da "leveza" da arquitetura moderna carioca (Niemeyer), que busca a curva e a transparência, a arquitetura de Ando busca o peso e a gravidade.

·             O Muro como Proteção: No semiárido, o muro cego não é uma negação antissocial do entorno, mas um imperativo de sobrevivência. Ele cria o que Christian Norberg-Schulz define como interioridade protegida. Onde o vidro expõe e aquece, o concreto de Ando protege e resfria. É a caverna moderna, o refúgio contra a agressividade dos ventos quentes e da poeira em suspensão.

 

A Fenomenologia da Luz: Do Elogio da Sombra à Luz Cegante

 

        A luz é o material de construção primário de Tadao Ando. No entanto, a luz do Japão é difusa, filtrada pela umidade e pelas nuvens baixas; a luz do Sertão é "branca", crua, vertical e implacável. Juhani Pallasmaa, em Os Olhos da Pele, critica a hegemonia da visão na arquitetura contemporânea. No Sertão, a visão desprotegida fere; o excesso de luz ofusca. Aqui, a arquitetura de Ando operaria uma transmutação fenomenológica necessária:

 

·        A Domesticação da Luz: As famosas frestas em cruz (como na Igreja da Luz) ou as aberturas zenitais controladas deixariam de ser apenas recursos cênicos para se tornarem filtros de habitabilidade. A estratégia de Jun'ichirō Tanizaki em Em Louvor da Sombra — onde a beleza reside na obscuridade e não na claridade — torna-se vital. O interior escuro das casas de Ando ofereceria o descanso fisiológico necessário para a retina fustigada pelo sol da Caatinga.

 

·        O Relógio Cósmico: A incidência da luz solar direta sobre o concreto liso transformaria os edifícios em relógios solares gigantescos. A passagem do tempo, marcada pelo movimento preciso de uma fresta de luz no chão de cimento queimado, reconectaria o habitante aos ciclos naturais, elevando a experiência do habitar a um ato contemplativo quase monástico.

 

"A arquitetura deve permanecer em silêncio e deixar que a luz e o vento falem." Tadao Ando

 

      A água na obra de Ando não é utilitária, é litúrgica. No Japão, ela simboliza purificação e fluxo. No Sertão, onde a seca é a narrativa dominante, a água é milagre, política e sobrevivência. A inserção dos espelhos d'água de Ando (como no Templo da Água) na paisagem nordestina ganharia uma potência semiótica devastadora:

 

·        A Miragem Concretizada: Em uma terra de sede, o espelho d'água atua como uma miragem estabilizada. Ele traz o céu para o chão, duplicando o azul infinito e criando uma sensação de abundância ilusória, porém psicologicamente reconfortante.

 

·        Climatização Passiva: Do ponto de vista bioclimático, a evaporação da água nos pátios internos funcionaria como um sistema de resfriamento evaporativo, aumentando a umidade relativa do ar nos microclimas criados pelas paredes de concreto.

 

·        A Arquitetura Emocional: Luis Barragán, mestre mexicano que influenciou Ando, falava da "arquitetura emocional". O som da água corrente em um pátio fechado no meio do sertão criaria uma barreira acústica e psicológica contra a aridez externa, um oásis de serenidade que contrasta com a luta pela vida que ocorre fora dos muros.

 

 

A Água: Espelho e Sacralidade

 

     Se no Japão a água é um elemento de purificação e continuidade, no Sertão ela é milagre e escassez. A introdução dos espelhos d'água de Ando na paisagem nordestina ganha uma carga simbólica e funcional ampliada.

      Le Corbusier falava do jogo sábio, correto e magnífico dos volumes reunidos sob a luz. Ando adiciona a água como um segundo plano de reflexão. No contexto da seca, um espelho d'água arquitetônico não é mero ornamento; é uma afirmação de vida, funcionando também como umidificador passivo do ar em um ambiente de baixa umidade relativa. A quietude da água nos pátios de Ando reflete o céu azul profundo do sertão, trazendo o infinito para a escala humana e criando, nas palavras de Luis Barragán, uma "arquitetura emocional" que convida à serenidade.

 

Geometria e Natureza: A Ordem no Caos da Caatinga

 

      A vegetação da Caatinga é tortuosa, espinhosa, adaptada e orgânica. O concreto de Ando é liso, ortogonal e geométrico. À primeira vista, parecem opostos. No entanto, a teoria arquitetônica nos mostra que o contraste exalta a natureza. Richard Serra, escultor minimalista, frequentemente coloca formas geométricas puras em paisagens naturais para, através da tensão, redefinir o espaço. Da mesma forma, a inserção de um cubo ou cilindro de concreto perfeito na paisagem "desordenada" do Sertão não anula a natureza, mas a emoldura.

      Ao isolar um mandacaru ou uma árvore de juazeiro em um pátio de concreto (o conceito de Natureza Enclausurada de Ando), a arquitetura retira a planta de seu contexto de luta pela sobrevivência e a eleva à categoria de escultura, forçando o observador a contemplar sua resiliência e beleza intrínseca.

 

Uma Brutalidade Sensível

 

     A transposição do conceito arquitetônico de Tadao Ando para o Sertão nordestino transcende a estética do "brutalismo" europeu ou paulista. Enquanto a Escola Paulista (Artigas, Mendes da Rocha) usou o concreto como manifesto político e social de infraestrutura, um "Ando Sertanejo" usaria o concreto como um manifesto existencial e climático. Essa síntese respeitaria a geografia através da massa térmica, honraria a luz através do controle das sombras e sacralizaria a água através de sua contenção. Seria uma arquitetura que, fundamentada nos preceitos de Frampton, Pallasmaa e Le Corbusier, não tentaria dominar a paisagem agreste, mas sim estabelecer com ela um diálogo silencioso, austero e profundo, onde o cinza do concreto serve de pano de fundo para o vermelho da terra e o verde-acinzentado da caatinga.

 

 

Referências Bibliográficas

 

FRAMPTON, Kenneth. (1983). Towards a Critical Regionalism: Six Points for an Architecture of Resistance.

PALLASMAA, Juhani (2005). The Eyes of the Skin: Architecture and the Senses. John Wiley & Sons.

TANIZAKI, Jun'ichiro (1933). Em Louvor da Sombra.

SCHULZ, Christian Norberg. (1980). Genius Loci: Towards a Phenomenology of Architecture. Rizzoli.

ANDO, Tadao. (1993). Light and Water. The Monacelli Press.

CUNHA, Elclides. (1902). Os Sertões.



"O exilado" - E.M. 2022


 


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