O muro invisível e a distinção de classes na obra de Pierre Bourdieu
Considerada por diversos estudiosos como um
dos grandes pensadores sobre as temáticas sobre distinção de classes a obra de
Pierre Bourdieu reflete o resultado de anos de investigação dedicados à
formulação de uma teoria geral das classes sociais. Originalmente lançada em
1979, “A Distinção: crítica social do julgamento” estrutura-se em três partes
principais, acompanhadas de introdução, conclusão e pós-escrito. A tradução
para o português chega para suprir a demanda dos leitores brasileiros,
oferecendo aportes fundamentais para diversas áreas das ciências humanas. A
escrita de Bourdieu caracteriza-se por um refinamento denso, por vezes visto
como elitista, mas que encontra justificativa em suas pretensões teóricas:
conforme exposto em Questões de Sociologia (1983), o autor busca romper com a
linguagem do senso comum e a filosofia social implícita no discurso espontâneo.
No contexto de seu lançamento na França, o livro suscitou a primeira grande
controvérsia pública da carreira do sociólogo, recebendo críticas severas de
intelectuais e da mídia, que o acusavam de determinismo sociológico. Contudo, a
magnitude desta e de outras obras garantiu a Bourdieu, em 1981, a cadeira de
Sociologia no prestigiado Collège de France. A Distinção atua simultaneamente
como uma crítica incisiva e como um modelo analítico dos mecanismos
socioculturais. Sua inovação reside em retirar o determinismo estritamente
econômico do centro da análise social, reposicionando as práticas de consumo cultural
dentro de uma estrutura de relações. O autor demonstra que as preferências
individuais — seja em arte, educação, política, esporte ou música — não são
frutos do acaso, mas estão intrinsecamente ligadas ao nível de escolaridade
(mensurado por diplomas e tempo de estudo) e, secundariamente, à origem
familiar. Bourdieu desmistifica o ditado popular de que "gosto não se
discute"; ao contrário, ele argumenta que o gosto é um poderoso mecanismo
de classificação social, servindo para aproximar ou segregar indivíduos.
A gênese dessas preferências reside na
correlação entre o capital cultural adquirido no sistema de ensino e aquele
transmitido pela família, seja por inculcação precoce ou aprendizado tardio. As
instituições de ensino, simbolizadas pelos diplomas das Grandes Écoles, impõem
e legitimam valores que capacitam os indivíduos a adotar disposições estéticas
condizentes com sua origem social. Em suma, escola e família operam para
distinguir o que é considerado o "gosto legítimo" (burguês) das
estéticas média e popular. Desta forma, o apreço pela alta cultura, como na
música erudita, aparece quase invariavelmente associado às classes dominantes,
em oposição às preferências das classes populares.
O elemento mais determinante na
distinção das disposições de consumo entre as diferentes classes é,
indubitavelmente, a estrutura das relações objetivas. Aquilo que é julgado como
esteticamente refinado ou simbolicamente vulgar — seja no vestuário ou na decoração
— não é uma qualidade intrínseca dos objetos, mas uma construção social
derivada de capitais acumulados historicamente. Os agentes sociais aprendem a
decodificar os signos da "alta arte" ou da "pseudo-arte"
através da lógica do campo de poder. Portanto, a disposição estética é
dependente das condições materiais de existência, sejam elas herdadas ou
atuais, e mediadas pelas condições econômicas e sociais impostas pela pedagogia
familiar e escolar. Nesse contexto, o gosto e as preferências de consumo são
reflexos dos condicionamentos de classe. Essas preferências funcionam como um
aglutinador para indivíduos oriundos de condições objetivas similares, ao mesmo
tempo que os diferenciam daqueles que, por estarem fora desse círculo de
semelhanças, manifestam diferenças inevitáveis. Como diria Bourdieu, o gosto
afirma-se fundamentalmente pela aversão e intolerância ao gosto do outro.
A família e a escola atuam como mercados simbólicos, fornecendo as competências necessárias para que os agentes transitem por diferentes campos sociais. Assim, as frações de classe que detêm alto capital escolar — e, por extensão, cultural — antagonizam com as classes desprovidas desses recursos, uma vez que os gostos são moldados por capitais que são, metaforicamente, dissonantes entre si. Percebe-se, então, que a reprodução moral — a transmissão de valores, virtudes e visões de mundo — fundamenta a legitimação de habitus desiguais. Isso reforça a hierarquia entre o que é culturalmente aceito ou rejeitável, autêntico ou inautêntico, manifestando-se em escolhas cotidianas como a alimentação, a decoração, o automóvel ou as amizades. O habitus é o princípio regente das afinidades imediatas que orientam os encontros e as escolhas sociais. Bourdieu tem o mérito de expor incisivamente que a igualdade de oportunidades e a valorização do sistema escolar — pilares ideológicos do republicanismo — não asseguram a igualdade social. A posição social de um agente depende primordialmente dos capitais que ele consegue objetivar em suas práticas, divididos nas três dimensões clássicas: econômico, cultural e social. É a configuração desses capitais, incorporados sob a forma de habitus, que define as classes sociais e as práticas de distinção.
O
habitus gera práticas classificáveis e atua, ele próprio, como um sistema de
classificação. É por meio dele que o mundo social é representado e que os
estilos de vida se estruturam. O habitus contém a síntese das condições e
disposições possíveis, fundamentando as diferenças sociais; ter um
"gosto" é, na verdade, manifestar preferências intrinsecamente
ligadas às condições objetivas de vida. Por
fim, os agentes interpretam os objetos simbólicos através dos filtros de
percepção de seus habitus. É crucial notar que cada agente atribui significados
distintos às suas práticas. O fato de realizar a mesma atividade ou consumir o
mesmo tipo de filme não implica que o habitus gere tendências imutáveis ou
idênticas. Bourdieu refuta o determinismo estrito, argumentando que as práticas
se distribuem em um campo infinito de possibilidades, tornando o universo das
preferências tão vasto quanto o das possibilidades objetivas. Nada define tanto
o comportamento de consumo das diferentes classes quanto a estrutura social em
que estão inseridas. O que consideramos "bonito" ou
"cafona", seja em roupas ou decoração, é uma construção social
baseada no acúmulo de capitais (recursos) ao longo do tempo. As pessoas
aprendem a identificar o que é admirável ou o que é "falsa arte"
seguindo a lógica de quem detém o poder. Em suma, o nosso senso estético
depende diretamente das nossas condições financeiras e materiais, transmitidas
pela educação que recebemos em casa e na escola.
O gosto, portanto, é o resultado dos
condicionamentos da nossa classe social. Ele une pessoas que tiveram vidas
parecidas e as separa daquelas que viveram realidades diferentes. Segundo
Bourdieu, o gosto se define, na verdade, pelo desgosto ou pela intolerância às
escolhas dos outros. A família e a escola funcionam como locais onde aprendemos
as competências para agir em sociedade. Quem possui muita escolaridade e
cultura (alto capital cultural) acaba se opondo a quem não tem esses recursos,
criando um abismo entre os gostos dessas diferentes classes. Essa transmissão
de valores e formas de ver o mundo serve para legitimar desigualdades,
fortalecendo a hierarquia entre o que é considerado "bom gosto" e
"mau gosto". Isso se reflete em tudo: no que comemos, em como
decoramos a casa, no carro que compramos e até nos amigos que escolhemos, pois
o nosso habitus (nossas disposições internas) guia nossas afinidades.
O
grande mérito de Bourdieu é revelar que a promessa de "igualdade de
oportunidades" através da escola não garante, de fato, igualdade social. A
posição de uma pessoa na sociedade depende dos três capitais principais que ela
possui: econômico (dinheiro), cultural (conhecimento/educação) e social
(relações). A forma como esses capitais são incorporados na pessoa (o habitus)
é o que cria as classes sociais e as distinções entre elas. O habitus é o
responsável por gerar nossos comportamentos e, ao mesmo tempo, funciona como um
sistema que classifica as pessoas. Ele estrutura nosso estilo de vida e conecta
nossas preferências pessoais às nossas condições reais de existência. As pessoas enxergam o mundo e os produtos
através das lentes do seu habitus. Contudo, é importante destacar que fazer a
mesma coisa ou ver o mesmo filme não significa que todos pensem igual. Bourdieu
nega ser determinista: ele afirma que existe um campo infinito de
possibilidades, de modo que as preferências podem variar enormemente dentro das
condições objetivas existentes.
A grande contribuição de Pierre Bourdieu
para a teoria sociológica reside, fundamentalmente, na articulação entre os
conceitos de habitus e campo. Essas ferramentas teóricas funcionam como pontes
que conectam as estruturas sociais externas à subjetividade dos indivíduos. A
aplicabilidade desses conceitos é vasta e universal, permitindo analisar a
homogeneidade presente nas escolhas e disposições humanas — desde preferências
musicais e culinárias até intervenções estéticas e posições políticas. Ao fazer
isso, Bourdieu demonstra que tais práticas não são aleatórias, mas sim o
resultado de processos históricos que moldam a cultura na modernidade. Diferenciando-se da tradição ensaística
e das grandes abstrações teóricas que dominavam o cenário intelectual francês,
Bourdieu utilizou a teoria como alicerce para a investigação empírica. Essa
abordagem permite perceber que as escolhas individuais, sujeitas a constantes
revisões e interpretações, não ocorrem por acaso nem isoladamente. A obra A
Distinção clarifica que a lógica por trás dos gostos pessoais responde, na
verdade, às regras internas e às disputas simbólicas de cada campo social
específico.
É
crucial notar como a luta por status hierarquiza as classes também no âmbito
das ideias e valores políticos. Isso sugere que, mesmo entre as camadas
populares que possuem algum capital cultural, existe uma submissão às normas da
elite dominante. Aqueles com menos competência — sob a ótica da "cultura
legítima" — acabam vulneráveis à imposição das ideologias dominantes.
Bourdieu aponta que a falta de capital escolar desses agentes é frequentemente
mascarada por uma linguagem que tenta dissimular posições políticas ingênuas ou
desencontradas, funcionando como uma espécie de "blefe" inconsciente.
Nesse cenário, a escola e o diploma
desempenham um papel central na manutenção da ordem social, detendo um elevado
poder simbólico. O diploma institucionaliza e fixa as disposições dominantes,
operando uma delegação simbólica que legitima a separação entre os
"competentes" (instruídos) e os "incompetentes" (menos
instruídos), perpetuando desigualdades sob a aparência de mérito.
As classificações que os agentes fazem
do mundo — o que é considerado de bom ou mau gosto — aplicam-se a toda a
reprodução do habitus. Essa adesão às estruturas sociais, aceita como natural e
evidente (a doxa), define os limites do pensável e as posições ocupadas dentro
das classes sociais. Ao combinar estatística e etnografia de forma ousada e
interdisciplinar, Bourdieu não apenas reestruturou a Sociologia da Cultura, mas
criou uma teoria robusta comparável às de Marx, Durkheim e Weber, oferecendo
uma explicação coerente para fenômenos que vão da linguagem à política.
Em suma, a obra de Bourdieu desmistifica
a ideia de que o gosto pessoal é uma expressão pura da individualidade,
revelando-o como um marcador de posição social e um instrumento de dominação.
Ao expor os mecanismos invisíveis que transformam diferenças culturais em
desigualdades sociais, sua sociologia oferece um aparato crítico indispensável.
Ela nos permite compreender que a reprodução das hierarquias não ocorre apenas
pela força econômica, mas, sobretudo, pela violência simbólica e pela
legitimação cultural, desafiando-nos a questionar as bases daquilo que
consideramos natural no convívio social.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento.
São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.

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