CRESCIMENTO ECONÔMICO E HERANÇA ESCRAVOCRATA

 

CRESCIMENTO ECONÔMICO E HERANÇA ESCRAVOCRATA: A DISTINÇÃO SIMBÓLICA NA INDÚSTRIA TÊXTIL DE SANTA CRUZ DO CAPIBARIBE

 

Resumo

 

Este artigo analisa a correlação entre o vertiginoso crescimento econômico do polo têxtil de Santa Cruz do Capibaribe-PE e a manutenção de estruturas simbólicas herdadas do período escravocrata brasileiro. Através de uma revisão bibliográfica fundamentada na sociologia crítica de Jessé Souza e Florestan Fernandes, e na teoria da distinção de Pierre Bourdieu, investiga-se como a precarização do trabalho nas "facções" e a autoexploração operária perpetuam uma hierarquia social. O estudo demonstra que o discurso do empreendedorismo local muitas vezes mascara a continuidade da desvalorização do trabalho manual, característica do habitus escravista, servindo como mecanismo de distinção para as novas elites locais.

 

Palavras-chave: Santa Cruz do Capibaribe. Indústria Têxtil. Herança Escravocrata. Distinção Social. Precarização do Trabalho.

 

1. INTRODUÇÃO

 

       A cidade de Santa Cruz do Capibaribe, situada no Agreste de Pernambuco, figura no cenário nacional como um caso sui generis de desenvolvimento econômico. Coração do Polo de Confecções, o município transformou-se, nas últimas décadas, de uma zona de agricultura de subsistência e pecuária em um centro industrial dinâmico, impulsionado pela popularmente conhecida "Feira da Sulanca" e pelo Moda Center Santa Cruz. Contudo, sob a superfície dos números de produção e do consumo, residem dinâmicas sociais que evocam estruturas arcaicas de dominação.

      O objetivo deste artigo é investigar como o crescimento econômico da região, embora tenha elevado a renda média, não rompeu necessariamente com as estruturas simbólicas da herança escravocrata brasileira. Pelo contrário, argumenta-se que tais estruturas se metamorfosearam em novas relações de trabalho, notadamente no sistema de "facções" (terceirização informal da costura), onde a distinção de classe opera brutalmente.

      Para tanto, fundamentaremos a discussão nas teorias de Jessé Souza sobre a "ralé" brasileira e a continuidade da escravidão como estrutura social, em diálogo com Florestan Fernandes sobre a integração do negro e do pobre na sociedade de classes. Simultaneamente, utilizaremos os conceitos de habitus e distinção de Pierre Bourdieu para compreender como as elites locais constroem sua legitimidade simbólica sobre a exploração de uma classe operária que, paradoxalmente, vê-se como "empreendedora de si mesma".

 

2. A HERANÇA ESCRAVOCRATA E A ESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO NO AGRESTE

 

A compreensão da dinâmica laboral em Santa Cruz do Capibaribe exige, preliminarmente, um olhar sobre a formação social brasileira. Diferentemente de uma visão economicista pura, que veria na industrialização uma superação do atraso, a sociologia de Jessé Souza (2003) nos convida a observar a continuidade das instituições. Para Souza, a escravidão não foi apenas um modo de produção, mas a instituição que forjou o "DNA" social do Brasil, criando uma classe de "subcidadãos" destinada ao trabalho pesado e desprovida de valor espiritual ou intelectual.

   No contexto do Agreste, a transição do trabalho rural para a máquina de costura não eliminou o estigma do trabalho manual. O que se observa nas facções — pequenas unidades domésticas de produção, muitas vezes sem ventilação adequada, com jornadas de até 16 horas — é a atualização do que Florestan Fernandes (1978) denunciou como a "revolução burguesa" incompleta no Brasil. O capitalismo dependente integrou o trabalhador não como cidadão portador de direitos, mas como "peça" descartável.

     A escravidão legou à sociedade brasileira não apenas a desigualdade econômica, mas uma gramática social onde o outro, o trabalhador braçal, é visto como coisa, como corpo disponível para o uso e o descarte. A modernização periférica apenas atualizou as formas de extração desse suor (SOUZA, 2009, p. 45).

      Em Santa Cruz do Capibaribe, essa "disponibilidade do corpo" manifesta-se na informalidade massiva. O trabalhador, muitas vezes egresso de zonas rurais empobrecidas, aceita condições análogas à servidão moderna sob a promessa de ascensão econômica, reproduzindo a lógica da "Casa Grande e Senzala", agora reconfigurada entre o "Dono da Marca" (que detém o capital simbólico e de giro) e o "Faccionista" (que detém apenas a força de trabalho bruta).

 

3. A DISTINÇÃO E O HABITUS DA NOVA ELITE

 

       A relação entre os grandes empresários do setor têxtil e a massa de costureiros e faccionistas pode ser lida através das lentes de Pierre Bourdieu. Em A Distinção: crítica social do julgamento (2007), Bourdieu argumenta que as classes dominantes utilizam o gosto, a cultura e o consumo não apenas por prazer, mas como armas de distinção para legitimar sua posição superior no espaço social.

       No microcosmo de Santa Cruz, a elite econômica busca diferenciar-se da massa trabalhadora da qual, muitas vezes, emergiu. Essa distinção ocorre através da posse de bens de consumo de luxo (carros importados, imóveis em áreas nobres, viagens), mas fundamentalmente através da tentativa de apagar a "marca" do trabalho manual.

       O habitus — sistema de disposições duráveis e transponíveis — opera aqui de forma complexa. O trabalhador da facção incorpora a necessidade (o gosto do necessário), adaptando-se a ambientes insalubres e à ausência de lazer como "sacrifícios necessários". Por outro lado, a elite local constrói um discurso meritocrático que justifica sua posição. Bourdieu (2007) alerta que essa violência simbólica faz com que os dominados percebam a hierarquia social como natural.

       A distinção só opera eficazmente quando é reconhecida como legítima tanto pelos que a detêm quanto pelos que dela são excluídos. O capital econômico, sem o capital simbólico que o legitime, é bruto; no Agreste, a legitimação vem pelo mito do 'self-made man', ocultando as estruturas de exploração (BOURDIEU, 2007, p. 112).

      Portanto, a exploração do trabalho em Santa Cruz não é apenas econômica; é simbólica. O faccionista que recebe centavos por peça costurada não é apenas "mal pago"; ele é socialmente situado em um lugar de subalternidade que a herança escravocrata brasileira naturalizou como o lugar do pobre.

 

4. O MITO DO EMPREENDEDORISMO E A AUTOEXPLORAÇÃO

 

       Um fenômeno contemporâneo crucial para entender Santa Cruz do Capibaribe é a cooptação da subjetividade do trabalhador. Em consonância com as críticas de Byung-Chul Han (2015) sobre a "sociedade do cansaço", mas enraizado na precariedade local, o costureiro não se vê como proletário, mas como "empreendedor".

       Essa ideologia é funcional para as elites locais. Ao transferir os riscos da produção (manutenção das máquinas, energia elétrica, saúde ocupacional) para o costureiro terceirizado, o grande capitalista têxtil maximiza lucros e se isenta de encargos trabalhistas — uma reminiscência da irresponsabilidade senhorial para com o destino do escravo após sua utilidade produtiva.

        A "Sulanca" é o palco dessa contradição: um espaço de aparente democratização do capital, mas que esconde uma cadeia produtiva baseada na exaustão física. O crescimento econômico do município, visível nos índices do PIB, é financiado por um déficit social invisível: doenças ocupacionais, evasão escolar para o trabalho precoce e a ausência de seguridade social. A distinção de classe se aprofunda: enquanto a elite acumula capital financeiro e cultural (enviando filhos para estudar na capital), a classe trabalhadora acumula apenas o desgaste físico, presa na "ralé" estrutural descrita por Jessé Souza.

 

5. CONCLUSÃO

 

       A análise da indústria têxtil de Santa Cruz do Capibaribe sob a ótica da sociologia crítica e da teoria da distinção revela que o crescimento econômico, por si só, não dissolve as heranças do passado escravocrata. Pelo contrário, o dinamismo do capitalismo periférico na região parece ter encontrado nas estruturas arcaicas de desvalorização do trabalho manual um motor potente para a acumulação.

        As teorias de Jessé Souza e Florestan Fernandes iluminam a persistência de uma classe de "subcidadãos" que, embora hoje recebam por peça produzida e não mais por ração, continuam excluídos da dignidade cívica plena. Pierre Bourdieu, por sua vez, ajuda a compreender como essa exploração é naturalizada através de mecanismos simbólicos de distinção, onde o sucesso de poucos é justificado pela ideologia do mérito, mascarando a exploração estrutural de muitos.

       Conclui-se que o desenvolvimento de Santa Cruz do Capibaribe é um "monumento à barbárie", para usar a expressão de Walter Benjamin, onde o progresso técnico das máquinas de costura convive com o atraso social das relações de trabalho, perpetuando uma hierarquia que tem cor, classe e origem histórica definidas na formação escravista do Brasil.

 

REFERÊNCIAS

 

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Tradução de Daniela Kern e Guilherme J. F. Teixeira. Porto Alegre: Zouk, 2007.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed. São Paulo: Ática, 1978.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Giula Giurgevic. Petrópolis: Vozes, 2015.

SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política moderna. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.





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