Agregados e a perpetuação simbólica das estruturas escravocratas
Originalmente
concebido em 1964 como tese de doutorado defendida na USP, “O homem livre na
ordem escravocrata”, de Maria Sylvia Carvalho Franco, percorreu um itinerário
editorial marcado por sucessivas reimpressões até submergir em um hiato de
disponibilidade nas livrarias. Durante esse período, sua sobrevivência
intelectual garantiu-se pelo recurso incontornável às fotocópias, dispositivos
que alimentaram gerações em cursos de História e Ciências Sociais, nos quais a
obra ascendeu ao estatuto de referência paradigmática.
A investigação inaugura-se com uma
interrogação ontológica fundamental para a compreensão da arquitetura social
brasileira: qual o sentido imanente do trabalho escravo na produção colonial
moderna? Distanciando-se das analogias fáceis, Maria Sylvia identifica uma
clivagem semântica entre a escravidão clássica e a moderna que elucida os
processos históricos divergentes das sociedades que as sediaram. A autora
implode a tese da exterioridade entre capital e escravidão; em sua análise, o
trabalho livre não é apenas o sucessor do cativo, mas constitui o mundo moderno
através da mediação dialética de seu oposto. A escravidão é, assim, apreendida
como uma instituição sobredeterminada por lógicas globais que lhe conferem sua
especificidade histórica.
As implicações dessa exegese são vastas, pois contestam a viabilidade de se definir um "modo de produção" estritamente pela presença do braço escravo — uma categoria frequentemente reificada como anterior ao capitalismo nas teorias "etapistas" do desenvolvimento, herdeiras da ortodoxia do marxismo stalinista. É imperativo sublinhar que tais teses foram sustentadas em 1964, momento em que essa tradição exercia uma hegemonia asfixiante sobre as interpretações da "revolução brasileira". Lamentavelmente, o uso do pretérito imperfeito para descrever esse peso teórico soa otimista demais, visto que o presente insiste em revigorar anacronismos semelhantes sob novas roupagens.
A atualidade da obra, contudo, não se
esgota na crítica ao escravismo. Se a análise é cirúrgica quanto ao passado
colonial, ela se torna definitiva ao caracterizar a formação sui generis do
estrato de homens livres e expropriados. Estes, embora destituídos da
propriedade dos meios de produção, mantiveram sua posse sem, contudo, serem
plenamente integrados à lógica mercantil. São os "homens
dispensáveis", figuras que a sociologia brasileira frequentemente tentou
confinar em dualismos redutores — ora vistos como "marginais"
arcaicos que obstaculizam o progresso, ora como espaços funcionais de uma
modernidade incompleta.
Contra tais simplificações, a advertência
de Maria Sylvia é cristalina: a teleologia da sociedade brasileira — sua
orientação para o mercado externo — determinou integralmente sua morfologia
social. Mesmo apartados da produção de mercadorias, o destino e a localização
estrutural desses homens pobres foram selados pela dinâmica do capital.
A análise evita as acrobacias teóricas
da ortodoxia que, para salvar manuais, postulava latifúndios "feudais por
dentro e capitalistas por fora". Refuta-se aqui a ideia de uma
"coexistência de não-coetâneos" ou de sobrevivências arcaicas. Mesmo
as críticas ao dualismo que enxergam o "atraso" como funcional ao
"moderno" permanecem prisioneiras da mesma armadilha dicotômica. O
esforço da autora é apreender a unidade contraditória de dois princípios
reguladores: a produção direta de meios de vida e a produção de mercadorias,
entendendo-as como práticas que se constituem reciprocamente.
Essa postura teórica desdobra-se em
consequências políticas de longo alcance. Em 1964, tais teses representavam um
contrafluxo herético. Para a vulgata da época, o escravismo era apenas um
núcleo de irracionalidade e atraso, o que fomentava a crença de que a superação
dessas "remanescências" deveria ser conduzida pela burguesia, vista
como o agente subversivo de uma etapa necessária. O realismo analítico de Maria
Sylvia desautoriza esse realismo normativo, desnudando a fragilidade das
coalizões políticas que se pretendiam "objetivamente possíveis".
Para além da teoria social, o livro
oferece uma propedêutica sobre o trato documental que rejeita o empirismo
rasteiro. A autora dialoga permanentemente com Weber e Marx, mas sem sucumbir à
"pasteurização funcionalista" do primeiro ou à redução do segundo a
um profeta da sucessão unilinear de modos de produção.
Ao perscrutar o material empírico da
civilização do café no Vale do Paraíba, a violência emerge como um elemento
estruturante que permeia todas as instâncias da vida social. Ela não é um
acidente, mas uma linguagem incorporada até mesmo nas esferas da vizinhança, do
lazer e do parentesco. Os testemunhos de processos-crime, transcritos com
crueza, revelam que a violência não era apenas um comportamento regular, mas
uma conduta socialmente sancionada e positivamente valorada.
Violência e Favor não operam como
antíteses da racionalidade capitalista; ao contrário, estão alojados no âmago
da expansão do capital e da formação do Estado. A autora demonstra como a
"espinha dorsal" do Estado moderno — a separação entre o público e o
privado — foi obstaculizada por:
-
Escassez de burocracia qualificada;
-
Ausência de necessidade imediata de racionalização;
-
Fidelidade a valores de grupo e influências pessoais.
A contradição econômica entre a
subsistência e o mercado desdobrou-se, assim, em uma síntese política onde a
vida pública e a privada fundem-se em uma unidade indissociável e autoritária.
Revisitar este estudo é confrontar-se com
uma narrativa que transcende o rigor acadêmico. No capítulo final, ao tratar da
ascensão e declínio dos fazendeiros, os sujeitos históricos não surgem como
retratos idealizados, mas como suportes de categorias econômicas.
Nesse sentido, a obra pode ser lida como
um "romance sociológico" de uma classe e de uma época, onde o
destino, o hábito e a tragédia humana são reconstruídos com uma elegância
estilística rara. A aliança entre a demonstração científica rigorosa e a
sofisticação da prosa consagra este livro como um clássico: uma obra que, por
ser inesgotável, exige ser lida e relida.
FRANCO,
Maria Sylvia Carvalho: O homem livre na ordem escravocrata. Editora Unesp,
1997.
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