A grande mão
Não se tratava, e que isto fique claro
desde o princípio para que não se cometam erros de julgamento sobre o carácter
de quem narra, de uma curiosidade vulgar, daquelas que fazem abrandar o passo
diante de um acidente de viação para vislumbrar o brilho fugaz do sangue no
asfalto, mas sim de uma necessidade quase científica, se é que a ciência pode
debruçar-se sobre os abismos da alma sem perder, no processo, a sua própria
razão, de compreender o mecanismo daquela engrenagem a que chamavam, com uma
simplicidade aterradora, “A Grande Mão”. O nome, desprovido de subtilezas
metafóricas, sugeria tanto o amparo que recolhe quanto a força que esmaga, mas
a investigação a que me propus, arrastando-me pelos subterrâneos digitais e
físicos de uma cidade que há muito deixara de ser um lar para se tornar um
cenário, revelou que a mão não estava ali para salvar ninguém, estava ali para
aplaudir. O objetivo da organização, despido das roupagens hipócritas da
filantropia moderna, era transformar o suicídio, esse ato irrevogável e
solitário, num espetáculo de massas, uma ópera bufa encenada numa arena
circular onde a morte não era o fim, mas o clímax de um guião bem pago.
Havia
arquibancadas, estruturas de aço e plástico erguidas para acomodar corpos
quentes que desejavam ver um corpo arrefecer, repletas de espectadores que, por
motivos que a minha razão tateante ainda tenta, sem grande sucesso, decifrar,
encontravam uma satisfação inominável, talvez uma catarse vicária ou apenas o
tédio supremo de quem já viu tudo e agora precisa ver o nada, ao assistir a
semelhantes tirarem a própria vida. O ritual, pomposamente batizado de "O
Último Grande Grito de Fúria", não era um sussurro de despedida, mas uma
performance, o suicida, prostrado no centro geométrico daquele círculo maldito,
como um gladiador que luta contra si mesmo, tinha o dever contratual, e
sublinhe-se o absurdo burocrático da coisa, de vomitar sobre a plateia ávida
todas as suas angústias, as raivas acumuladas como pó nos cantos da alma, as
tristezas que o tempo não curou e todos os sentimentos que, aprisionados
durante uma vida de silêncios cobardes, ganhavam agora, no limiar do
desaparecimento, a eloquência das tragédias gregas. E como se a presença física
não bastasse para saciar a fome do mundo, as audiências começaram a ser
transmitidas, o sinal digital carregando a morte em alta definição através de
serviços de streaming para quem tivesse o cartão de crédito suficientemente
recheado para pagar o alto preço cobrado, a morte tornada commodity, pixelizada
e consumida no conforto do sofá, entre uma garfada no jantar e um gole de
vinho.
Tive
a oportunidade, se é que a palavra oportunidade não carrega aqui um peso
positivo indevido, de assistir a uma dessas sessões, não por iniciativa
própria, que a minha coragem para enfrentar o horror costuma falhar na porta de
entrada, mas através de um convite, quase uma intimação, de uma amiga que,
movida pelas ambições literárias que tantas vezes disfarçam o voyeurismo,
tencionava escrever um livro sobre este novo tipo de comportamento, como se a
morte alheia fosse apenas tinta para a sua caneta. Ao chegar lá, percebi que
não éramos os únicos abutres da cultura, outros escritores, jornalistas,
cronistas do caos, estavam presentes, os cadernos abertos, as canetas em riste,
famintos em colher histórias para os seus trabalhos, todos nós ali, fingindo análise
sociológica enquanto a "A Grande Mão" virava, com a indiferença de um
carrasco, uma nova página na grande narrativa sádica da humanidade.
A minha questão central de trabalho, a
qual, na falta de terminologia mais precisa nos compêndios de psicologia,
denomino "o suicídio como espetáculo", não emergiu de uma epifania
teórica, daquelas que nos assaltam sob o duche ou no meio de um sonho, mas
brotou, dolorosa e purulenta, das entranhas de uma investigação anterior,
quando, ao entrevistar familiares de suicidas, deparei-me com um fenómeno
desconcertante que abalou as minhas convicções humanistas. Havia, nos relatos
daqueles que ficaram, os sobreviventes da dor, uma ênfase inesperada, quase
obsessiva, não na dor da perda ou na saudade do ausente, mas nas cenas do ato
final, descrições pormenorizadas, carregadas de uma visceralidade visual que
faria inveja a um realizador de cinema, os detalhes do gesto, a geografia exata
do local, a iluminação, a reação da plateia involuntária que passava na rua. O
histórico de vida do sujeito, as suas dores de infância, os amores falhados, as
dívidas impagáveis, tudo aquilo que eu ingenuamente, na minha formação clássica,
supunha ser a chave para compreender a tragédia e que constituía o meu objetivo
inicial, revelou-se secundário, eclipsado, varrido para baixo do tapete pela
magnitude da mise-en-scène.
Confesso,
e não o faço sem um certo tremor nas mãos, que fui tomado por uma profunda
perplexidade diante dessa nova faceta da morte humana. Até então, eu repousava,
talvez confortavelmente, na crença de que o suicídio pertencia,
invariavelmente, ao mais sagrado e inviolável foro íntimo, um diálogo mudo
entre o sujeito e o seu insuportável ser. Contudo, o que se apresentava a mim,
ali naquela arena e nos relatos recolhidos, era o suicídio elaborado como
performance, como um evento público, desenhado não para acabar com a dor, mas
para exibi-la. Diante desse abismo cognitivo, vi-me num impasse, como um
arqueólogo que escava ruínas à procura de um templo e encontra um teatro, eu
buscava uma "explicação" escavando a arqueologia biográfica do
suicida, tentando encontrar a causa na linearidade da sua história, mas
encontrei um universo completamente distinto, sublinhado pelos familiares com
uma frieza cirúrgica, que em nada dialogava com o meu propósito original.
Seguindo as diretrizes clássicas da saúde, eu tentava decifrar o enigma dentro
do universo interior do sujeito, perscrutando neurónios e traumas, mas recebia,
como resposta, um imperativo dos entrevistados, um grito mudo que dizia:
"olhe para fora". Era uma sugestão tácita, mas brutal, de que a verdade
não residia apenas na dor interna, labiríntica e subjetiva, mas na
exterioridade do ato, na sua manifestação na pele da cidade.
Essa
exterioridade, uma vez aceite como premissa, sugeria uma articulação
perturbadora, vinculando a morte a elementos estranhos à saúde pública
convencional, estávamos a falar de cenas, imagens, composição cenográfica,
script, plateia e espectadores, o léxico do teatro invadindo o território do
necrotério. O suicídio aproximava-se, assim, perigosamente, muito mais de uma
produção cultural, de uma obra trágica encenada no asfalto quente ou no palco
daquela arena, do que de uma patologia clínica isolada. A partir desse
deslocamento de olhar, fui obrigado a elaborar novas hipóteses, tateando o
escuro como um cego num quarto desconhecido: o suicídio como espetáculo, a
estetização da aniquilação, o ato como forma extrema, e final, de comunicação,
ou ainda, como uma subversão radical do "estilo de morte" higienizado
do ocidente, que varre os cadáveres para as gavetas frias dos hospitais antes
que alguém possa ver a cor da morte.
Cada
uma dessas hipóteses ramificava-se em labirintos de questionamentos que, longe
de simplificar, enriqueciam a complexidade do tema até ao ponto da náusea: Para
quem é produzido este espetáculo, quem é o destinatário deste bilhete escrito
com sangue? Que objetos e elementos compõem a estética dessa aniquilação, será
o viaduto apenas cimento ou será ele cúmplice? Como a cultura da cidade, com o
seu concreto armado, as suas sombras projetadas pelos arranha-céus que ocultam
o sol e a esperança, influencia a arquitetura destes suicídios? Se o suicídio é
comunicação, a quem se dirige esse grito silencioso que antecede o impacto?
Qual é o diálogo secreto, sussurrado na linguagem da gravidade, entre o corpo
que cai e a metrópole que o recebe, não como mãe, mas como uma boca aberta?
Ao
mergulhar na literatura, procurando boias para não me afogar nestas águas
escuras, encontrei ecos destas indagações, inúmeras referências que
entrelaçavam o suicídio à subjetividade das cidades, à história da construção
das metrópoles, essas máquinas de moer gente, e às questões estéticas da
cultura urbana. Bebi de fontes da sociologia, da antropologia urbana, da
história das mentalidades e do urbanismo, áreas que me forneceram as
ferramentas, talvez não para consertar o mundo, mas fundamentais para refletir
sobre a hipótese do suicídio espetacular. Foi com esses fragmentos teóricos,
cacos de vidro de um espelho partido, que teci o pano de fundo para compreender
como a morte voluntária se articula com o mundo exterior, numa dança macabra
onde ninguém conduz. 
"O estádio do espelho" - E.M. -2025
Estabeleci,
então, uma conexão vital, um fio condutor entre as duas diretrizes que possuía:
a pesquisa de campo, que apontava inequivocamente para a tríade
cena/cenário/espectador, e a teoria, que convergia, como rios para o mar, para
a questão urbana. O eixo da minha pesquisa fixou-se, portanto, na intersecção
trágica, no ponto onde a carne encontra a pedra: o suicídio como espetáculo na
metrópole. A articulação suicídio-metrópole não foi forçada, não foi uma
invenção da minha mente cansada; ela ocorreu organicamente, como um tumor que
cresce alimentado pelo próprio corpo, sustentada por informações reiteradas que
insistiam em relacionar a morte voluntária com a cultura urbana, com o processo
de "metropolização" e com as subjetividades forjadas no caos das
grandes cidades, onde se está sempre acompanhado e sempre sozinho. Minha
proposta ousada, se é que a ousadia tem lugar na análise da desgraça, foi a de
construir uma nova perspectiva, relacionando o ato à cidade de São Paulo, esse
monstro de mil cabeças, através de suas cenas e seus espectadores, analisando a
subjetividade que nasce, ou morre, no vácuo entre dois elementos colossais: o
espetáculo da morte e a cidade viva, indiferente, pulsante.
Dentro
desse conjunto, tornou-se imperativo, uma obrigação moral e intelectual, focar nos suicídios públicos, aqueles que rasgam a
normalidade dos espaços externos, que mancham de vermelho o cinzento do
dia-a-dia: ruas, viadutos, praças, avenidas, metrôs, linhas férreas. São esses
atos que dialogam diretamente com a metrópole, não há intermediários, não há
paredes; ela, a cidade, é o alvo principal dessa comunicação desesperada, o
corpo é a mensagem e o asfalto é o papel. Foi necessário, também, pensar como
esse gesto se insere, e ao mesmo tempo subverte, os comportamentos padrões de
nossa cultura diante da morte contemporânea, que tende a escondê-la, asséptica,
em quartos de hospital com cheiro a éter, longe dos olhos sensíveis. O suicídio
público é um escândalo, uma obscenidade, não porque mata, mas porque devolve a
morte ao centro da vida cotidiana, obriga o transeunte apressado a parar, a
olhar, a reconhecer a fragilidade da sua própria existência.
De
fato, o verdadeiro ser metropolitano, essa nova espécie que respira monóxido de
carbono e se alimenta de pressa, é aquele que transita sobre a ponte, viajando
do velho para o novo, em um fluxo incessante, sem olhar para baixo. Entretanto,
essa nova altura, típica das metrópoles verticais que desafiam os céus, é capaz
de causar vertigens existenciais, suscitando tendências suicidas de difícil
controle, um chamamento do abismo que sussurra ao ouvido que voar é possível,
ainda que apenas por breves segundos, tendências que, paradoxalmente, fazem
parte integral da ambígua condição humana na cidade grande, onde subir na vida
muitas vezes significa apenas estar num andar mais alto para cair.
Talvez
por isso, e aqui a ironia atinge o seu cume mais doloroso, o cumprimento mais
sincero e terrível já feito a um viaduto tenha sido o bilhete encontrado pela
polícia, amarrotado e húmido de suor frio, no bolso de um suicida sentimental,
um poeta do fim: "Bendito sejas, Viaduto paulista! Sem tu eu não poderia
passar desta para melhor, embalado pela brisa que te circunda. Adeus! Até para
a eternidade és o passadiço de útil eficiência!". Neste bilhete, a
metáfora da passagem atinge o seu paroxismo, o viaduto deixa de ser apenas uma
estrutura de engenharia, fria e calculada, que liga a Rua Direita à Rua Barão
de Itapetininga, ou o velho centro ao novo mundo. Ele transfigura-se, passa a
ligar o efêmero ao eterno, o lugar do sofrimento terrestre àquilo que se
imagina, com a esperança dos desesperados, ser o além, uma felicidade perene
acariciada pelo vento final.
Sentado
naquela arquibancada da "A Grande Mão", observando o homem que tremia
no centro do círculo, microfone na mão e lágrimas nos olhos, enquanto a plateia
aguardava o clímax como quem aguarda um golo numa final de campeonato, percebi
que a arena era apenas uma miniatura da cidade lá fora. Concluo, assim, com o
amargo sabor da lucidez na boca, que as cenas suicidas, constituídas como
espetáculo, são elaboradas a partir da própria matéria-prima oferecida pela
cidade, sua altura vertiginosa, sua velocidade alucinante, sua dureza
implacável, e depois representadas para a própria cidade que auxiliou na sua
construção, como um filho que cospe na cara do pai. A metrópole, como um todo,
é o Grande Espectador, um gigante de pedra e vidro que observa, impassível, os
seus filhos a despenharem-se. Minha discussão, o meu livro, a minha vida,
buscam, em última análise, dissecar esse diálogo entre o espetáculo suicida e a
urbe, analisando como essas cenas interrogam a cidade, como elas operam um
corte violento no cotidiano, interrompem o fluxo temporal mecânico dos relógios
de ponto, redimensionam lugares mudando para sempre sua significação original, um
viaduto nunca mais é apenas um viaduto depois de alguém voar dele, e,
sobretudo, questionam o lugar que a morte ocupa, ou deveria ocupar, em nossa
cultura, essa cultura que prefere pagar bilhete para ver morrer a estender a
mão para ajudar a viver. O homem no centro gritou, mas o som foi engolido pelos
aplausos, e eu soube, naquele instante, que o silêncio da queda é o único som
que a cidade verdadeiramente respeita.
Conto do livro "Afecções"
E.M. 2008
Comentários
Postar um comentário