Vozes invisíveis
O
Alento Subversivo da Sintaxe: A Forja Estilística da Consciência Coletiva em
Levantado do Chão
O
romance “Levantado do Chão” (1980), de José Saramago, transcende a mera crónica
da opressão camponesa no Alentejo para se constituir como um monumental
manifesto estilístico. Longe de ser um adereço formal, a sintaxe singular e
idiossincrática do autor é o motor discursivo que subverte a ordem narrativa
tradicional, promovendo a fusão das consciências individuais numa voz coletiva
que se levanta da resignação histórica. A prosa de Saramago, com seus períodos
fluviais, a abolição dos sinais gráficos delimitadores e o narrador
omnipresente e dialogante, funciona como uma engenhosa mimese da oralidade e do
pensamento popular, concedendo dignidade formal à epopeia dos deserdados da
terra, a família Mau-Tempo.
I.
A Dissolução do Indivíduo e a Voz Coral
O
mais notório artifício estilístico saramaguiano reside na desconstrução da
pontuação convencional, particularmente na ausência de travessões e aspas para
demarcar o discurso direto. Este recurso não é um capricho, mas sim uma
estratégia profundamente política e estética. Ao eliminar as barreiras
tipográficas entre a voz do narrador, os pensamentos dos personagens e os
diálogos, Saramago força uma fusão textual que anula a compartimentação
burguesa do indivíduo. A fala é inserida no fluxo contínuo da narração por
intermédio de vírgulas, criando um ritmo de leitura acelerado, que simula o
jorrar incessante e inseparável das vidas em comunidade:
“a
sabedoria de Deus, amados filhos, é infinita: aí está a terra e quem a há-de
trabalhar, crescei e multiplicai-vos, Crescei e multiplicai-me, diz o
latifúndio, Mas tudo isto pode ser contado doutra maneira.”
Neste excerto, o discurso religioso e a voz cínica do latifúndio misturam-se com a interpelação direta do narrador, diluindo as fontes de autoridade e expondo a ideologia subjacente à opressão. A voz que emerge é a de um povo que, embora calado pela história, está linguisticamente unido pela fluidez do sofrimento e da esperança comum. O leitor é obrigado a participar ativamente, discernindo as vozes, mimetizando a escuta atenta do contador de histórias que narra a saga dos Mau-Tempo através das gerações.
II.
O Narrador-Cronista e a Ironia Social
O
narrador de “Levantado do Chão” assume uma postura singular, distanciando-se da
neutralidade académica para se tornar um cronista-comentador. Ele divaga,
reflete, antecipa acontecimentos futuros e, sobretudo, dirige-se ao leitor com
uma ironia mordaz que revela o absurdo da injustiça:
“De
tão pequenas coisas depende, como se sabe, a felicidade das pessoas.”
A
interposição do "como se sabe" insere um juízo de valor que convoca a
cumplicidade do leitor na crítica. A ironia é a arma que desmonta a narrativa
oficial dos poderosos, aquela que justifica o "fado de parideiras e
animais de carga" das mulheres e a exaustão física que recai sobre o homem
do campo, o qual,
“em
jornadas de dezesseis, dezessete, dezoito horas atravessará a juventude e
penetrará a velhice arrastando às costas o fardo do latifúndio, que para os
pobres constitui-se de exaustão física e nada de seu além da cova em que se
deitará por último.”
Este
narrador irónico e filosófico funciona como o intelectual orgânico de Gramsci,
oriundo da própria classe oprimida, cuja função é transformar a consciência
dispersa em consciência política organizada.
III.
A Conexão Atlântica: O Grito da Terra em Portugal e no Nordeste Brasileiro
A luta pela posse da terra, tema central do romance alentejano, estabelece um eloquente paralelismo transatlântico com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Nordeste brasileiro, especialmente em Pernambuco, Paraíba ou Ceará. Embora Saramago se foque no contexto do latifúndio português pré-25 de Abril de 1974, a essência do conflito ressoa com a histórica concentração fundiária do Nordeste brasileiro, região marcada por um sistema agrário oligárquico de herança colonial.
Tal
como o avô João Mau-Tempo, que "consumirá sua infância no trabalho da
terra tão logo suporte o peso de uma segadeira", as famílias acampadas do
MST no Brasil enfrentam a brutalidade da concentração fundiária e a
precariedade. O que distingue a luta alentejana da luta nordestina não é o tipo
de opressão, mas a forma de resistência.
No
Nordeste, o MST organiza ocupações de latifúndios improdutivos, transformando a
luta pela terra num projeto de Reforma Agrária Popular, com ênfase na
agroecologia e na soberania alimentar, o que ecoa a ideia de Saramago sobre a
terra que deve ser levantada, trabalhada e pertencente aos que dela vivem:
“Do
chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os homens e as
suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de
trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira.”
A
estilística saramaguiana, ao fundir vozes e tempos, dá à saga dos Mau-Tempo uma
universalidade atemporal, tornando-a comparável à persistente e por vezes
violenta luta do MST. Onde os Mau-Tempo sofrem a tortura clandestina da
ditadura salazarista, os Sem Terra enfrentam a violência no campo, o
assassinato de líderes e a criminalização da luta, numa perpetuação da lógica
de expropriação. Ambos os contextos, separados por oceanos e décadas, são
unidos pela gramática da injustiça e pelo imperativo de que a terra se levante,
figurativa e literalmente, para a posse dos trabalhadores.
Conclusão
A
estilística de Levantado do Chão é, em última análise, um ato de justiça
poética e uma afirmação da primazia da voz sobre o silêncio imposto pela
história. Saramago não se contenta em meramente contar a saga da família
Mau-Tempo; ele engendra um artefato linguístico que imita a própria respiração,
a resistência teimosa e a memória orgânica de um povo secularmente oprimido. A
subversão sintática e o uso engenhoso do narrador como um catalisador de
consciências não são escolhas gratuitas, mas sim a base de um projeto estético
que confere dignidade máxima ao discurso popular.
A
abolição dos sinais diacríticos que enquadram o diálogo funciona como um
mecanismo de democratização textual, no qual a voz do mais humilde camponês se
funde com a do narrador erudito e reflexivo. Este fluxo ininterrupto e
oralizado, esse parágrafo-rio que atravessa o texto, reflete a inevitabilidade
e a solidariedade das vidas que se entrelaçam no latifúndio, onde a
sobrevivência jamais é um esforço individual, mas uma partilha de fardos e
esperanças. O romance, assim, torna-se um vasto monólogo interior coletivo, uma
confissão pública da dor e da aspiração de toda uma classe.
Ao
fazer da linguagem a arma principal de sua narrativa, Saramago transcende o
realismo social para alcançar o realismo ético. O escritor eleva a experiência
concreta dos lavradores do Alentejo e, por extensão, de todos os sem-terra do
mundo — dos camponeses portugueses do século XX aos militantes contemporâneos
do MST no Nordeste brasileiro — ao patamar de uma epopeia universal. A mensagem
fulcral é que o ato de se levantar do chão, quer seja para a revolta política,
quer seja para a conquista da voz, é o passo derradeiro de quem compreende que
a desordem social exige uma desordem estética.
Em
suma, "Levantado do Chão" demonstra que a verdadeira revolução não se
manifesta apenas nas barricadas da história, mas também no papel, onde a
gramática é desmantelada para dar voz a quem nunca a teve. A sintaxe de
Saramago é a própria forma da resistência, provando que o chão, oprimido e
cultivado, é o palco onde a palavra, finalmente liberta, transforma a miséria
em dignidade e a submissão em soberania.


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