Sangue com pão e circo
O
acontecimento, assim como muitas notícias das páginas policiais, durou apenas a
quantidade cronológica das banalidades cotidianas, mas o fato ficou
registrado na memória, fotograficamente. Acompanhar ocorrências de tragédias familiares e
homicídios, como estes procederam, formas e métodos, nas páginas da “Folha-PE”
era o deleite de todas as manhãs na década de 90. O mencionado periódico era
caracterizado, graficamente, por exibir despudoradamente as cenos dos corpos em
fotos com cores vivas, em ângulos estratégicos, minuciosamente bem ajustados
para captar uma melhor qualidade da imagem, mostrando o resultado que iam desde
assassinatos brutais, acidentes envolvendo veículos, atropelamentos, desmembramentos,
entranhas expostas, vísceras escorrendo através do abdome, ossos saltando, peles
esfolas, decapitações, globos oculares saltados para fora do crânio,
dilacerações da carme, pedaços de massa cefálicas espalhados pelo chão. Aglutinação,
pessoas das mais variadas classes, degrades etários, sortimentos de tipos e
personalidade, formando conferencias que circunstavam qualquer um que portasse
um exemplar da Folha-PE. Eram ignorados os cadernos de política, economia,
esporte, cultura. As páginas em tom vermelhas eram o relevante. A apoteótica
carnificina humana, fotos agrupadas de corpos formando mosaicos de um
holocausto do cotidiano do agreste. E nessas conferencias de rapinas a euforia
sede lugar ao espanto ou assombro. Observar abjeções através de suas
representações fotografadas, ou outras formas de captar o infligir da
integridade de outros seres, sempre foi uma forma de satisfazer nossas anseias
pelo violento e sanguinário.
Pela documentação encontrada pelos
peritos, a jovem tinha 14 anos. Ofertava programas para quem pudesse pagar o
valor precificado. Por sua tenra idade, não era difícil achar clientes.
Maberaldo crispou, “puta cheirando a leite, uma pena, nem peguei,” e um coro de
risos contaminou a todos que ouviram o comentário. Talvez estivesse tão
entorpecido em percorrer as delineações da cena que prestava considerações aos
comentários de Maberaldo, que mesmo sem estar sob os efeitos do álcool
continuava a deferir jocosidades sexuais ao cadáver da vítima. Talvez essa
fosse uma maneira dele atribuir grandiosidade as próprias palavras, pois algo
devia lhe faltar, assim como muitas incompletudes que caracteriza qualquer
pessoa, existem aqueles que desdenhas do sofrimento real e se enlameiam na
própria abjeção. Se faz correto afirma que em algum momento de nossas vidas
iremos encontrar e nos comportamos como um “Maberaldo” nessa existência. É um
preço a se pagar no processo civilizatória, mas alguns irão transpor essas
fazes, outro permanecerão. Sigamos com o mistério que estava posto aos peritos
da investigação do episódio. A pergunta surgiu: como uma pedra com aquele
tamanhas e peso quase intransportável por veículos de médio e grande porte, foi
colocada em cima de uma pessoa. Moradores locais desconheciam e existência de
um pedregulho como aquelas características naquelas redondezas.
A peculiar cena de um adolescente, com o corpo estirado e esmagado por uma pedra pesando supostamente toneladas, visto a dificuldade de se imaginar como tal elemento foi transportado até aquele local, para consumação de um assassinato, era suficiente para criar as variadas especulações. Na foto havia um detalhe: suas pernas, do joelho aos pés, foram poupadas. Pés, um deles calçado com sandalha havaiana, o outro descalço. Talvez longe de qualquer conclusão que os peritos apresentassem, me perdia em criar e recria possíveis situações, dramas, desventuras trágicas, cóleras, fatalidades, alguma vingança sofrida, ou, quem sabe, a tentativa de vingar-se de alguém que resultou numa reação imprevista, a parcialidade também não é descartável, desfechos shakespearianos tercem as malhas de histórias cotidianas mais que nossa vã criatividade possa arquitetar. Uma miscelânia de roteiros passava pele mente dos investigadores, quem sabe, dos repórteres criminais que brevemente cobriram o caso. Enquanto estres dois grupos, policiais e jornalistas, cambiavam deduções, presos num vórtex de especulações baseadas nas suas formações e experiências vividas, moradores das redondezas, ao prestarem seus depoimentos sobre o caso concluíam, “isso é coisa de quem tem dinheiro, alguém tem condições é contratou o serviço dela, pra depois tirar uma onda e matar, acontece muito por aqui, só que dessa vez fizerem isso.” Um dos policiais percebeu marcas nos tornozelos da vítima. Beberam. Cheiraram. Euforia. Excitação. “Bora pegar numas meninas,” sugeriu alguém deles. Encontram ela em alguma esquina. Serviço acertado. Não satisfeitos e histericamente movidos por suas incompletudes resolveram que aquela garota deveria ser espancada, humilhada, amarrada e arrastada em sobre terra e asfalto, durante hora, até culminar em encontrar uma pedra de descomunal tamanho e peso, com misterioso método para transporta-lo, capas de subverter a lógica da perícia criminal. E o apoteótico final do espetáculo, a morte, aquele que marcaria em sua memória, rindo e gabando-se do feito apoteótico para todos seus pares, quem sabe, a história seria transmitida para seus filhos e netos, e estes transmitissem para gerações subsequentes, num futuro não muito distante onde grandes feitos fossem valorizados pelo teor abjeto que este representasse, futuro em que as pessoas perderiam as rédeas dos atos hediondos e estes correriam solto no vasto campo das banalidades.
Na minha inocência de adolescente de 14 anos,
sempre observando as reações de Maberaldo. Sempre ironizando os cadáveres das
páginas da Folha_PE. Ponderava, “esse cara carrega consigo, em seus pensamentos
mais íntimos, a frustração de não ter sido ele próprio a desfrutar daquele
episódio sádica. Configuração exagerada essa que tem coisas quem não temos
coragem de confessar a própria alma, todas as vergonhas são confessáveis,
fazemos isso o tempo todo, só que algumas não são convenientes, e outras, em
momentos de elevada excitação, deixaram de ser vergonhas para se tornarem nosso
afago narcísico.
Se
alguém agrumetar, ao acaso, a dizer que a violência de hoje não difere em
essência da de outrora, décadas, séculos retrocedidos, eras transcorridas, mas
apenas no palco que a recebe, talvez fosse acusado de cinismo, ou de
insensibilidade, ou de uma fria indiferença, e, no entanto, é preciso
reconhecer que de tão repetida e de tão exposta, a violência já não causa
espanto, e o sangue, esse líquido que deveria apontar como símbolo do
sofrimento, escorre como se fosse apenas mais uma cor no noticiário matinal,
entre a previsão do tempo e a cotação do dólar. Quanto maior o fluxo sanguíneo
nas cenas diárias dos casos policiais, representações viscerais em filmes,
narrativas de pantomimas de seres humanos infligindo a carne de outros humanos,
aos suspiros prazerosa e degustativo da sempre fiel plateia, mais aclamado será
aquele que melhor proporcionar ao público expectante.
Os jornais, esses pregadores do
espetáculo, abrem suas páginas como templos modernos, e nas suas primeiras
colunas apoiam-se não santos nem mártires, mas cadáveres anônimos, vítimas de
balas perdidas que, paradoxalmente, jamais se perdem, pois sempre encontram
carne onde se alojar. O leitor, sentado diante do café quente, mastiga o pão
enquanto devora também a morte impressa, e assim cumpre-se a liturgia do “pão, circo
e sangue”, não mais no Coliseu romano, mas na sala de estar com televisão
ligada.
E se antes a violência acontecia na sombra,
no silêncio das vielas escuras, hoje ela se oferece em espetáculo consciente,
ensaiado, quase teatral. Rebeliões em presídios transformam-se em palcos
improvisados, onde presos erguem armas como quem levanta troféus para as
câmeras, orgulhosos de uma fama momentânea que lhes é concedida. Nos becos e
nas ruas, o tráfico arma sua ópera grotesca, e nela dançam tanto os traficantes
quanto os policiais, atores rivais e cúmplices ao mesmo tempo, cada qual
buscando o melhor ângulo da lente, como se a morte só fosse legítima se
registrada em alta definição.
Mesmo a violência privada, aquela que nasce
do silêncio doméstico, do impulso momentâneo ou da tragédia inesperada, não
escapa ao destino de ser convertida em espetáculo. Logo surgirão as câmeras, as
entrevistas, os depoimentos lacrimosos, e o que era dor íntima converte-se em
entretenimento coletivo, tragédia transformada em novela. O choro da viúva
mistura-se ao aplauso do público invisível, e o sangue derramado, que deveria
envergonhar, converte-se em audiência garantida.
Não nos enganemos: é a imagem, e não o fato,
que sustenta o espetáculo. O assassinato sem câmera talvez não exista, ou ao
menos não valha tanto, e a violência, quando não filmada, parece carecer de
realidade. Como se a morte só fosse plenamente morte quando devidamente exibida
no horário nobre. E assim, nós, espectadores famintos, corremos para a tela
como quem busca abrigo e alimento, encontrando apenas a encenação de nossa
própria miséria.
Talvez reste perguntar: quando a vida se
torna espetáculo e a morte, entretenimento, que espaço sobra para o humano?
Somos ainda homens ou apenas plateia, prisioneiros de uma arena invisível em
que, sob aplausos silenciosos, assistimos à repetição infinita da tragédia? Destino
inevitável: o que deveria nos indignar já não causa nem arrepio, e a cada nova
cena de sangue transmitida, mais nos acostumamos ao absurdo de que a violência,
esta velha atriz, encontrou na mídia o seu palco mais fértil e no público, a
plateia mais fiel.
Ao lembras do cadáver da garota, penso, talvez concluindo, que muitos grilhões morais, leis e regras de conduta social sempre foram necessárias para a paisagem a nossa volta não se transformasse num gigantesco lago de sangue, vísceras e sêmen.
As memórias do centauro em 02.10.2025
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