Pretérito imperfeito
Acordei
com essa lembrança: o dia que deixamos Pilar-Ba para morar em Santa Cruz do
Capibaribe. Trinta e cinco anos se passaram e recordo dessa cena como se o
evento tivesse acontecido a poucas semanas. Acho que meus pais, ainda com algum
vestígio de lucidez entranhado em suas mentes, tentaram fazer desse dia o menos
traumático possível, ancorando na ideia do fingimento, “vamos fingir que hoje
será um dia como outro qualquer, banal, rápido e desprovido de expectativas.” É
claro que roteiros como este não teria uma conclusão esperada. E como a
conclusão de toda história sobre ruptura, o resultado daqueles ruídos dia não
seria diferente, permeado com lágrimas, com raiva, com medo e com dor (uma dor
silenciosa, como a preferências
costumam chamar).
Converso pouco sobre a Pilar-Ba, ou “A caraíba” como costumo chamar essa cidade perdida no meio do sertão baiano. Afirmei em certa ocasião, numa dessas conversas sobre crença religiosa, cujo o tema era uma possível vida pós morte, que se o mito do “Paraiso Divino” não fosse fruto de uma negação pueril da nossa inevitável morte, que se este, comprovado em sólida realização material, confirmado fosse, e além disso, a escolha de como desejaria que este paraíso fosse, me caísse como opção, diria com a impulsividade eufórica e profundamente ingênua: “... pois se tal paraíso existe e não for uma representação do que minha vida foi nos anos que morei nesse pequeno e esquecido limbo, com todos os detalhes da paisagem, com todas as pessoas, amigas ou não, com as cenas dos cotidianos que vivi, sem mais sem menos, com verossimilhança nos sentimento e expectativas para possíveis futuros que só existiram em meus delírio em noites de insônia, se não cabe essa minha preferência, vil e egoísta que seja, pediria a deus, caso exista ou não, que guardasse sua versão de paraíso onde ele achasse mais conveniente. O certo, a nível de uma rigidez de lógica é que paraísos perdidos, são meras projeções, trágicas maldiçoes criadas pra nos aprisionar num ciclo infindável do eminente fracasso da jornada que a vida a existência no legou. Caminhamos por essa vastidão de irrealizações. Somos pobres amarilhos, vagando pela vastidão dos desejos irrealizáveis. Talvez. Talvez o meu maior seja esse, o que aquele dia, o da mudança de cidade, nunca tivesse ocorrido.
Lembro de minha mãe preparando, em noites
anteriores, toda a mudança: condicionando em caixas todo tipo de objetos
pequenos e soltos, roupas, talheres, lenções, frascos e etc. moveis eram
arrastados para um canto da pequena casa que morávamos, para facilitar e
agilizar os trabalhos da mudança. Alguns vizinhos ajudavam, os mais próximos.
Não conseguia parar de reparar os traços de suas expressões. Eu deveria ter
onze anos e me hipnotizavam os contornos dos rostos das pessoas. A madeira como
a musculatura se contraia de acordo com as palavras ou frases eram ditas ou
escutados. O dilatas das pupilas, expandindo e encolhendo, a plasticidade da
boca, as linhas faceais que comunicavam as emoções, fosse elas quais forem. A
desolação amaldiçoava a todos. Marizete soluçava lamentos, “amanhã vocês não
estarão mais aqui”. Escutava isso perdido em completa inocência, ignorando as
consequências que despontariam no dia seguinte. Estava perdido em algum tipo de
euforia expectante, desconhecia que finitude das euforias, quem todas começa e,
por consequência de sua natureza, culminam em ressaca melancólica, culpa ou
arrependimento.
Era
uma manhã de uma sexta-feira que não recordo da data. Fazia calor. Como
característica do Sertão baiano: ar quente, com ventos empoeirados indomáveis.
Ordenou minha mãe que fossemos, eu e meu irmão, a escola, como se fosse um dia
normal de aula: “conversei com a direção e pedi que liberassem vocês mais cedo,
expliquei o motivo”. Continuou as orientações: “assim que vocês chegarem, vão
direto tomar banho, almoçar. Temos que sair de 12:00. Pai de vocês não gosta de
viajar tarde.” É claro que tal tarefa não teve êxito. Nossas mentes esqueceram
das orientações de minha mãe. Naquela sexta a escola liberou todas as turmas
mais cedo. Saímos em grupo, ficamos uns minutos no fliperama, outros tantos
olhando discos, mais um bocado folheando revistas na barca de jornais, vadiamos
e vadiamos, despreocupados. Esquecemos do nosso dever, esquecemos que toda
aquela representação de um mito de paraíso perdido seria deixada para trás, e
que no dia seguinte estaríamos num lugar diferente de todo este.
Ao
chegarmos em casa encontramos minha mãe, carrancuda, furiosa pelo nosso atraso.
Testemunhamos a casa como nunca antes, completamente vazia, espaços dos cômodos
aos ecos. Com mudas de roupas repousando ao pé da porta do banheiro. Aos gritos
dela nos lavamos, nos vestimos. Pelo atraso iriamos almoçar em algum lugar na
estrada. Pequenos grupos de pessoas nos esperavam lá fora. A molecada da rua se
aglutinava, descalços e sujo de poeira, pois estavam brincando na terra,
espantados com a cena de nossa despedida. Testemunhei Dona Lindinalva com
umedecidos, era uma mulher que não derramava lágrimas por qualquer intempérie
ou adversidade. Marizete aos abraços com minha mãe. Dona Lurdinha finalmente
saiu de casa. O caminhão com a mudança já havia partido. Meu pai, calado e com
esfíngica antipatia, prostrado dentro do seu fusca branco 82. Em seu âmago
quiçá pensasse “quanto mais rápido sairmos daqui, melhor”.
Saímos,
ao peso do fato, rumo a Santa Cruz do Capibaribe, agreste de Pernambuco. Numa
viagem que oscilava entre a euforia ingênua e uma tensão estressante, minha mãe
chorava a cada parada. Eu e meu irmão fazíamos o que sempre fazíamos em
viagens, observávamos a estrada, a paisagem, as serras, a vegetação seca, as
vastas e desérticas planícies. Em tudo aquilo uma angustia crescia dentro de
mim, onde terminava a calmaria da inocência, e onde começaria uma realidade permeada
de medo, angústia, desesperança, desconfiança, trágicas ironias, pessimismo e
ceticismo díade da natureza humana. Talvez tenha sido naquele momento, naquela
despedida Pilar que minha literatura tenhas dado início, mesmo que
silenciosamente. Numa sexta habitavam o que para mim era a substantivação do
mito do paraíso perdido, e dois dias depois, com a realidade reivindicando sua
posição, descobrimos o quão foi uma péssima ideia ter abandonado Pilar. A
conflituosa criatura que habitava o inconsciente de meu pai decidiu que havia
chegado o momento de assumir seu controle. E as fatalidades se instalariam na
família.
Era dezembro 1989, um sábado calorento. Estamos consumidos pelo enfado da viagem. Uma estranha náusea afetou minhas narinas. O odor sufocava-me. Sentia medo. Não estava mais em Pilar. Perguntei a minhas sobre minha caixa de fitas K7, a música era minha fuga. Retrucou comum grito “NÃO SEI!!”. Ela ainda atormentada pela possiblidade de nunca mais rever as amizades que deixou. Depois tentando corrigir a rispidez do ato acrescentou, “deve tá no caminhão, só quando descarregar a mudança.” Cantarolava “Hunting high and low... High...There's no end to the lengths I'll go to...” reproduzindo a melodia nos pensamentos, mesmo sem saber a tradução da letra. Sentir a indiferente mão do luto tocar minhas emoções pela primeira vez. Percebi que os sentimentos de luto para ser embolsados não é necessário que os indivíduos que compartilhamos afetos estejam mortos.
As memórias do centauro em 24.09.2025.
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