Descrente

 

         Fogem-me da memória os períodos da vida que eu tenha sido disciplinado com o cultivo de alguma crença. O mais provável é que tais períodos nunca tenham de fato existidos. Tentativas houve. Iniciativa de terceiros, parentes e conhecidos que, quando não cômicas e desajeitadas, imputavam ou amplificavam os nossos tão conhecidos medos inconscientes. Por tradição católica, fracassei majestosamente ao tentar completar o ensinamento do catecismo: era tomado por um deprimente enfado, torcia para que a professora fosse acometida por qualquer imprevisto (Deus me ignorava por completo), deseja estar em qualquer lugar deste universo, menos naquela sala sacrossanta e claustrofóbica (Deus continuava me ignorando). Passava mais tempo olhando na direção da janela, observando e analisando cada minúsculo detalhe sobre a paisagem que hipnotizavam minhas pálpebras, do que fixando atenção nas palavras que a mulher de voz e sorrisos pálidos, proferia. Esta, composta por magreza debilitada, caminha com o corpo curvado, como e estivesse carreando a mais pesada das cruzes, fincada nas costas, que de tão pesada quase lhe parte a espinha dorsal ao meio. Lembro que uma de suas principais tarefas era tentar prender minha atenção em sua aula, e deixar a janela para quando a aula terminasse. Era evidente a inutilidade de sua insistência bíblica. Exceto, é claro, se tapassem aquela janela com tijolos e cimento. Não lembro quantos anos tinha, nesse período. Talvez sete ou oito. Nesta idade vislumbrava-me com a natureza a minha volta, enquanto o metafisico das aulas de catecismo despertava tanto interesse quando sentar na cadeira do dentista. Confessei para uma conhecida católica em certa ocasião: dos rituais católicos que era obrigado a presenciar sentia uma curiosidade martirizante quanto ao sabor da hóstia. Olhava aquelas pessoas numa fila que abraça toda a nave da igreja, uma a uma recebendo-a, o padre pousando-a na língua dos fieis. Questionava: “que gosto tem isso”. Nunca soube. Minha falta de atenção para os ensinamento divinos colocou como prova a finitude da insistência bíblica da professora do catecismo. E minha mãe não pretendia ser tão perseverante com as insistentes reclamações da professora do caríssimo. Nunca conclui a primeira comunhão, consequentemente, nunca senti o gosto tinha hóstia. Ao final daquela equação, me dei por satisfeito. 


       As dúvidas sobre a clareza de tudo que escrevo me permeiam feito maldição, mas acredito que ficou elucidado que as tentativas de terceiros em convencer a alinhar-me a rituais de igrejas, de qualquer seguimento religioso, nunca foram bem sucedidas. Sempre me despertaram aversão truculenta as regras e leis. Não só pela falta de sentido que todas exalam, desprovidas de algum tipo de lastro de racionalidade (me via perdido entre indivíduos exilados em algum tipo de descontrole emocional, perdidas em medos que elas mesmas significavam). Minha descrença sobre rituais religiosas permanece incólume até o exato momento que escrevo estas palavras, e acredito que sem ânsias proféticas que continuará sendo. Nos ambientes que cresci sobravam a atmosfera da religiosidade, junte com todas suas as características proeminentes: o medo invisível, éramos educados a sentir medo daquilo que nossos olhos não evidenciavam, um possível castigo divino, uma entidade a mando de Deus para averiguar algumas fraturas ou desvios nas leis bíblicas, aos olhos de Deus nada permanece escondido, a vigilância existia e as punições, castigos na vida terrena, danação na eternidade.

       E foi com esses medos que nossa fisiologia foi sendo moldada. Via-se medo em quase tudo; nossas expressões, nos movimentos, nas tomadas de decisões, medos ponderados, medos reativos, medo nas conclusões, medo nas reticências, o medo estava disponível na mais ampla gratuidade, até se tornar uma dependência, tudo que se cultiva disciplinarmente se tornará parte de nossa natureza. Resgato da memória uma conversa que tive com amigo, veementemente crente. Disse-lhe em ocasião cotidiana: “trocaria minha vaga no reino do céu por alguns anos de racionalidade em minha família. Talvez os rumos que nossas vidas tomaram não seriam tão turbulentas e traumáticas. Acho que racionalidade deveria ser matéria recomendada nas escolas.” O transladar da vida é como um fluxo de rio: há uma nascente e um desaguar no oceano, sem retorno. A aceitação se faz necessária (visto que esta também poderia ser outra matéria nas escolas). Mas sou grato pelos meus medos. Foi justamente dele que veio meu faminto interesse pelo conhecimento, e, consequentemente. Quanto mais conhecia, mais o questionava, e maravilhosamente, mais descrente do medo me tornava.

         “A professora de catecismo corria desesperadamente através das ruas de Pilar, com pânico desenhando as linhas do seu rosto, um profundo terror. Pedindo desesperadamente ajuda a quem quer estivesse por perto. Ninguém a escutava. Ninguém a socorria. Não se enxergava quem ou o que a perseguia. E ela apenas gritando e correndo.” Tive esse sonho poucos dias antes de, finalmente, abandonar a escola do catecismo e desisti da primeira comunhão. Ainda hoje tento encontra uma intepretação para este sonho. Deixaria para outros textos, maiores e mais detalhados, a continuação da minha conturbada relação com meus medos inconscientes que, por desventura, ensinaram-me a cultiva-los. Árduos, confusos, desajeitados e desesperançosos foram os momentos de (quase) aprendizado, visto que ainda hoje posso lembrar das afecções que a “vigilância de Deus” provocaram.                      

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