Estruturas "bem" estruturadas

         


        Costumo revisitar os livros na mesma proporção que revisito minhas memórias. Reler livros sempre foi um hábito, bons livros, aqueles que nos provocam algum tipo de desconforto, estes sempre merecem uma revisita, corriqueiramente, ou por curiosidade, minha escolha e minha opção. Entretendo, quanto as memórias, estas são evocadas sem que as tenha chamado. São intrusivas, semelhante a uma criatura no qual desconheço qualquer método para doma-la. Todas as ocasiões que tentei adestra-las conscientemente, elas retornam com mais força, vivas, prontas para estraçalhar minha quietude. Folheando as páginas de “O poder simbólico”, do tão conhecido Pierre Bourdieu. Livros que nos trazem uma espécie de “raio x” de como as relações são construídas, ou melhor como estas relações (estruturas) já encontram devidamente cristalizadas (estruturadas) desde antes do nosso nascimento. Nos restando apenas ‘cair de paraquedas’ e, assim, nos moldarmos a essas “regras do campo”, assimilados por estas, psicologicamente, socialmente, até mesmo organicamente, visto os danos somáticos causados por estas sem que a percebamos. 

"Metrópole" - 2022- acrílico sobre papel - Edson Moura 

        Não é novidade entre os meus conhecidos que meu ofício, a atividade onde retiro me sustento é trabalhar numa oficina, consertando motores, utilizando as mãos e vivenciando uma espécie de alto-flagelo ao ter que lidar com clientes desconfiados e importunos. Mas vamos deixar esse assunto para outras linhas e voltemos as memórias. Ao estudar as mais diversas relações do capital simbólico, “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeito ou menos que o exercem”, como o próprio Bourdieu descreve, lembrei de um episódio em que uma professora, que lecionava numa dessas escolas da elite local, escola esta que recebeu o nome do ‘pai da relatividade’, insistia em sugerir que o eu deveria abandona meu oficio e encara uma carreira como docente em escolas. Lembro de suas palavras como se pronunciadas em atual momento: “o mundo precisa mais de você numa escola do que em uma oficina concertando motores.” Fiquei imaginando “como seria o mundo sem os concertadores de motores, posso imagina-lo dois meses de greve da classe, mas me veio à mente o caos que seria as sociedades ditas civilizadas sem os concertadores de motores. É claro que se fossemos fazer uma análise psicanalítica sobre esta fala, bem ao método freudiano, concluiríamos que se trata na realidade de ambivalências de valores simbólicos: aqueles que usam as mãos para sobreviverem, e aqueles que usam o intelecto (e evidente que nessa afirmação careceu de algumas gramas de reflexão). Todavia foi justamente esta afirmação – entre outras ditas pela professora que poderei analisar futuramente – que o entendimento sobre o “o poder simbólico” e outras obras do Bourdieu. Acredito que pessoas que trabalham em oficinas concertando motores elétricos consigam absorver melhor as abstrações da linguajem do sociólogo citado nesta crônica. Quantos aos docentes, acredito que estejam por ai afora, planejando “as estruturas estruturantes”, formatando seus inconscientes para evitarem trabalharem concertando motores.    


                 

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