Revelação (conto)

 

       Conferia os números no relógio quantas vezes a minha apreensão dispusesse. Observava os minutos passando, um seguido do outro. Vigiava a movimentação a minha volta, acuado e preocupado, como se algum detalhe do encontro estivesse escapado do plano, ou se tudo estivesse prestes a falhar por alguma razão fora das previsões. Minhas pernas se agitavam velozmente por baixo da mesa. As mãos, em vontade própria, procuravam qualquer objeto para entreter-se. Confesso que estava tão nervoso que se Juliana me enviasse uma mensagem cancelando o encontro eu iria me sentir a pessoa mais aliviada desse mundo. Sempre fui péssimo em planejar encontros. Aliás, nem lembro da última vez que sai de casa com essa finalidade. Sou travado em conquistas, as palavras se misturam quando tento dizer algo que pareça interessante, tanto que nem mesmo eu entendo o que falo. Juliana era uma mulher muito bonita, e mais inteligente que já tive a oportunidade de conversar. Acho que ela vai me achar um bobalhão. Aquela primeira tentativa de fazer contato com ela foi uma odisseia angustiante, condimentado com um punhado de ousadia. Mas sempre fui impulsivo mesmo. Ainda bem que ela foi permissiva. Mas não posso confiar. Pode ser apenas intenção para amizade. Gentileza nem sempre é sinal de desejo por sexo. Ela me deixa com os nervos empedrados todas as vezes que conversamos, com os batimentos cardíacos martelando o peito, prestes a arrebenta-lo. nas primeiras abordagens terminava as conversas com parecendo uma chaleira de tão suado. Aqui não será diferente. Desde quando cheguei que o suor goteja e encharca partes da roupa. Acho que só vou me acalmar quando ela chegar, sentar aqui ao meu lado e iniciar o encontro com qualquer assunto.

         Gosto de pizza. Ela também deve gostar. Mas devemos ter cautela em nossa dieta. Somos dois pacientes que se conheceram em um centro de hemodiálise. A senhora coincidência nos apresentou, gentilmente - sabe-se lá o que tenha preparado para nós no futuro - fomos unidos pela comorbidade, e já que aqui estamos, aproveitemos cada segundo. Com esses rins fodidos, sou suspeito pra dizer se amanhã acordarei vivo. Nunca tinha conhecido alguém tão bonita e com uma personalidade tão cativante quanto Juliana. Não sei se a mereço, fiz muita merda com outras pessoas a quem tentei iniciar qualquer relação. Acho que ela não me deseja. Sou chato pra cassete. Faço cara feia com qualquer aperreio. Nem sei o que vamos comer. Cheguei muito cedo. Essa minha tenção só piora. Odeio esperar. Acho que ela vai se atrasar. Detesto pessoas que se atrasam. Acho que ela não vem. Se pelo menos eu soubesse algum prato que ela goste, deveria ter perguntado ontem. Vou sugerir pedirmos qualquer coisa que esteja dentro de nossa dieta, quando ela chegar. Mas nesse cardápio sem tem bagaceira. Uma salada serviria. Nossa, como ela é bonita. Ainda pergunto o que ela viu em mim. Nem eu me aguento. Às vezes acho que as pessoas me jugam pelas costas como cara grosseirão, ou algo parecido.

        Uma chuva leve começa a cair. Consigo escutar o chiado das gotas que desabam sobre o telhado da pizzaria. Juliana surge repentinamente na entrada. Usando uma jaqueta de couro sintético para se proteger da umidade, vestido razoavelmente curto, que alcançava o meio da coxa, quase colando ao corpo. Caminhava equilibrando-se nos saltos, que mesmo sendo pequenos, ainda lhe afligiam uma certa dificuldade. Ao retirar a jaqueta, percebi de imediato o pequeno decote que deixava amostra a sinuosidade arredondada dos seus seios. As formas do seu corpo denunciavam que ela poderia ser uma praticante de musculação, alguém que se preocupava com a aparência. E não demorou muito para que outros homens a notassem quando ela se deslocou de onde estava até a mesa onde eu estava. “Oi, muito tempo esperando?”, me perguntou, ensaiando o mesmo sorriso acolhedor. Puxou a cadeira e antes de sentar puxou o vestido para baixo, regulando adequadamente, uma leve jogada de cabelo. Porra, como sou displicente! Deveria ter me levantado e puxado a cadeira para ela. Ache que é assim que as regras devam ser. Mas ela nunca demonstrou ser do tipo que se importe com isso. Sempre a vejo tomando as iniciativas para tudo, se servindo e se virando como bem endente.

         Confesso que não imagina que Juliana fosse tão atraente. Tínhamos um montão de afinidades, ou pelo menos era isso que ficou evidente nas primeiras conversas. Acho que uma das incompatibilidades que posso encontrar seja a de que ela provavelmente tenha uma melhor condição financeira, pois trabalhava como representante de uma distribuidora de tecidos. Costumava negociar valores muito elevados. Tive a oportunidade de olhar algumas notas de vendas que ela tinha finalizado. Já eu era um fodido que se virava, de emprego em emprego, ajudando em casa e não sobrando quase nada. Deveria estar preocupado com isso, mas ela demonstrava ser totalmente segura quanto a esse detalhe. Demonstrava desinteresse em conversar sobre seu trabalho, sobre quanto ganha, como se aquilo não tivesse lá muita relevância. Eu como com minha irritante insegurança, inconscientemente, insistia em martelar esses pensamentos.

          Gostava de ouvir sua voz. Meu nervosismo se acalmava a cada assunto que despejávamos na conversa. Ela gostava de escutar Miles Davis, nunca tinha conhecia, pessoalmente, alguém que gostasse do Miles. Fiz a revelação de que usava o álbum Late Night Jazz do Chet Baker para aliviar minhas crises de insônia. Ela devolveu um “uso John Coltrane” parta aliviar as minhas”. Com quase oito bilhões de pessoas povoando esse planeta e me deparo com alguém que também escuta jazz instrumental para embalar o sono. Já posso imaginar o andamento daquela noite, descobriremos estamos diante de duas almas que gostas da mesma coisas, que riem das mesmas brincadeiras, não se importam com a condição financeira na qual se encontram, gostam de assuntos inteligentes, conversaremos sobre música, livros e filmes, iremos ao cinema, planejaremos nossa própria dieta, continuaremos a frequentar o centro de hemodiálise, fazendo cada sessão juntos, até nossos rins se recuperarem e voltar a funcionar normalmente, conhecerei sua família e amigos, irei compra um par de anéis de noivado, faremos planos para viajar e conhecer lugares ao redor do mundo, faremos planos para comprar uma casa, ou um apartamento, discutiremos a possibilidade de termos um filho, amaduremos juntos, envelheceremos juntos, e... Tenho esses frenesis de idealizações as vezes. Tento evitá-los, são quase incontroláveis.           


         Sugeri que pedíssemos salada. Ela concordou sem o menor traço de hesitação. Creio que que assim como eu deva ter calculado sobre a cautela sobre a nossa dieta. Uma sonolência invadia meus olhos. Esquecemos do tempo que correu desapercebido. Estava tão mergulhado em especulações otimistas que esquecia até de minha paranoia sobre se seria possível um relacionamento entre uma mulher de classe média, bem sucedida, e um cara desajeitado, repleto de inseguranças e com uma vida financeira atolada em gambiarras. “Sinta-se à vontade para perguntar o que quiser a meu respeito.” Me pedia, como alguém que demonstrava estar disposta a arrisca que eu penetrasse mais ainda em seu mundo. Veio na mente todas a cenas dos primeiros contatos que tive com ela. Éramos adultos. Se existiam intenções de ficarmos naquela noite, deveria tomar a iniciativa de colocar as cartas na mesa. As batidas no meu peito galopavam. Pois chegava o momento de dizer a ela o que sentia. Além do faminto tesão, é claro, desejava estar com ela por mais tempo. Tudo é passageiro nesses tempos, mas acredito que estava ali uma chance de poder desfrutar momentos ao lado de algum que me cativou tão profundamente.

         “Acho que formamos uma ótima dupla, seria fantástico se pudéssemos repetimos mais vezes essa noite.” Disparei esse, sem a menor noção que estava fazendo ou falando. Mas se as coisas tivessem que acontecer de verdade, quem, fossem naquela noite. Ela ficou calada por alguns segundos, e aquele silêncio me devastava por dentro. Antes de responder qualquer coisa se levantou cuidadosamente. Engoli seco, mas já estava acostumado com rejeições, o bastante para demonstrar controle emocional sobre a situação. “Vamos conversar lá fora. Quero respirar um pouco. A chuva estiou e está fazendo um frio agradável. Gosto de caminhar no frio.” Sugeria, enquanto caminhava na direção da porta de entrada. A seguia enquanto observava as curvas do seu corpo, a maneira como ela caminhava, jogando despreocupada uma perna após a outra, e o jeito com organizava os cabelos.  

         Começamos a caminha pela calçada, com os paralelepípedos empapados com a água da chuva. Uma fina garoa cortava discretamente nossa pele. Ela com os braços alçando seu próprio busto, caminhava com um olhar divagando para a movimentação dos carros e pedestres na rua, como quem estivesse arquitetando uma resposta para a proposta que tinha olvido lá dentro da pizzaria. “Tenho que lhe contar algo sobre mim”, afirmou bruscamente, enquanto sentia meu sangue gelar meus pensamentos borbulhavam especulações das mais insólitas, “provavelmente ela tenha filhos e estava com receio de me dizer, é como homens não se envolverem em relacionamentos mais sérios com mulheres com filhos, ou deve estar com algum problema no trabalho, prestes a largar o emprego e partir em uma nova empreitada, mais de acordo com sua personalidade, sua família costuma ser implicante com caras das classes mais baixas, preferem aqueles que possibilitem melhor segurança, não querem ver sua filha por aí andado com um pé-rapado como eu, sem perspectivas, talvez ela tenha percebido que estou de quatro caído por ela e está de mudança para outra cidade, distante de tudo isso aqui, não quer se envolver com ninguém porque odeias ter que desatar laços, conheceu alguém antes de mim que lhe despertou algum sentimento mais forte que este que estamos vivendo e está na dúvida qual dos dois escolher, ou ainda esteja ancorada em algum antigo relacionamento mal terminada e está aqui comigo para provocar algum tipo de ciúmes, desestabilizando a neutralidade do seu ex e fazendo-o quere uma reaproximação.”

         Enquanto meus pensamentos turbilhoavam numa espiral caótica ela olha em meus olhos e me pede um abraço. E como alguém que encontra uma acolhida que em muitos anos havia procurado, apertou seu corpo ao meu, pude sentir seu perfume, de fragrância adocicada que se misturou ao meu. Uma lágrima intrusa escorria através de sua bochecha até desaguar no canto da boca, com a ponta da língua degustando-a.

         “Não lembro qual a última vez que alguém me abraçou desse jeito, assim tão forte, acho que assim como eu, você também estava sentindo falta. Mas tenho que lhe dizer o eu sou, talvez não entenda. Só lhe peço que não me agrida, não seja violento comigo, pois o que irei lhe revelar carrego comigo, e somente. Não se sinta traído ou enganado de alguma forma, nunca foi minha intenção. As coisas não deveriam acontecer como aconteceram, mas já que aqui estamos e não há outra alternativa. Não sou uma mulher de verdade. Pelo menos não nasci como mulher, transitei para o sexo feminino a alguns anos. Hoje sou mulher, e assim serei para o resto da vida. Alcancei minha paz, ou quase. Sei que não vai me aceitar assim como sou, e compreendo. Mas saiba que aqui, nesta noite, com você ao meu lado, foi uma das melhores coisas que me aconteceram desde que foi expulsa de casa,” revelou, olhando fundo nos meus olhos. Petrifiquei. Ouvindo Juliana me confessando seu segredo. Fui acometido por uma tristeza confusa, como se a satisfação pela incrível noite que tivemos cedesse lugar a uma sensação de coma, tudo pairava, os pensamentos flutuando, perdidos e confusos.           

         Sentamos no batente de um canteiro, com uma quaresmeira plantada ao centre. Era pouco mais de meia noite. Ficamos ali sentados mergulhados num silêncio sepulcral, como se as palavras estivessem sepultadas em alguma cova que tínhamos cavado naquela noite, com a intenção de enterra-las para numa mais serem pronunciada. Os assuntos que antes brotavam com perfeita naturalidade, se resumiam com murmúrios de decepção. Acho que ambos estávamos decepcionados com aquela situação. Imagino que ela estaria calculando, esperançosa, que eu aceitaria com boa naturalidade me envolver com uma mulher trans. Era difícil. Me sentia perdido. Mas queria permanecer com ela um pouco mais, pois ainda gostava dela. Podia perceber sua tristeza, e ela a minha. Havíamos compartilhado de tudo naquela noite. Na realidade nunca tive a oportunidade de conhecer alguém assim. Estava destruído por minhas falhas. Minha ignorância me derrotava mais uma vez, e me derrotaria outras vezes. Sentei mais próximo dela até encosta minha roupa levemente. Ela olhou-me nos olhos e soltou o mesmo sorriso acolhedor que me conquistou.

         Aos poucos as palavras foram ressuscitando. Os assuntos que embalavam as conversas voltaram. Num breve surto de empolgação trocamos confissões, as mais íntimas e reveladoras, coisas que talvez não diríamos para ninguém, era esse o sinal, de que tanto ela quanto eu sabíamos que poderia ser a última vez que iria conversar. Nos despedimos como duas pessoas que apenas se conheciam.                                 

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