Tijolos  (conto)
I
           Cai o inverno e nenhuma gota molhava o chão. Seria ingenuidade esperar por chuva num lugar tão seco, aonde não chegavam os caminhões-tanques com a água que serviria para o abastecimento da Vila de Poço de Fora. Os Carroceiros se faziam os grandes oficiais. Eram eles os mensageiros da água. Cultuados pelos que tinha sede, afeiçoados pelos urubus que transitavam os limiares da Vila, estes, voando através das fronteiras do São Francisco, um oceano dentro de um deserto famulento, a esconder lugares míticos como as ruínas a leste da Vila. O medo forma mitos que a imaginação cultiva dos brotos a primeira florada. Ninguém consumava o ato de ir para aqueles lados. Lugar perigoso pelas histórias que se ouvia, e todos acreditavam, ate mesmo aqueles que sabiam da verdade sobre cidade que estava morta. Nos moldes das histórias, um habitante havia naquela cidade. No ciclo continuo do esquecer e lembrar contraíra sua identidade. Como num sonho, onde turvas imagens se misturam, formando a homogeneidade disforme do imaginário. Todos em Poço de Fora colhiam seus mitos. E douravam com as crenças do seu âmago. O homem que perambulava pelas ruínas – chamavam-lhe de o Dono da Olaria. Mas poucos o viam. Sentenciado pela loucura de morar nas ruínas, o louco dos Tijolos. Pois era isso fazia. Nos dias, nas noites e no sonambulismo que misturava dia e noite. Os ditos sobre ele vinham de afeiçoado conversador. Que compartilhava os mistérios do que circundavam o Dono da Olaria.  Sobre sua chegada, sobre seus Tijolos.    
           Este, num limiar neutro do mundo, iria continuar com sua fábrica. Com seu ritual de barro. Trazia da cacimba, antes da plenitude da aurora, as latas com água e molhava um novo barranco de terra vermelha que acabara de ser descoberto por ele mesmo. Ele sabia que haveria trabalho para muitos meses, quem sabe, ate anos, pela quantidade de semanas que estava em sua empreitada, o barro serviria para incontáveis milheiros de Tijolos. A pá ficava no barranco, arrancando o justo presente da descoberta. Sempre no final da tarde de cada dia, quando o sol estava frio e não dissipava a umidade do barro. Ao mesmo tempo tinha a preocupação de não ser visto pelo proprietário daquele lugar, que ele mesmo não sabia ao certo quem o era. Mas já havia presenciado os latidos dos cães que eram soltos as seis, pontualmente. Patrulhavam os cercados, espantando qualquer intruso. Quando os primeiros latidos eram ouvidos, a carroça com a colheita seguia o rumo de sempre, na direção poente, onde se podia ver o dia morrendo, onde se podia ver os contornos da olaria, de seu casebre e o pequeno poço de onde retirava a água que tanto aguçava a curiosidade dos Carroceiros.
          Quando chegou ao seu barraco, já era noite. Dividia sua própria presença com os sintomas rústicos de que iria conviver junto ao infinito contar de dias. Que talvez não terminasse os sérvios antes do ultimo sopro de sua vida. Olhava as mãos, esfregando uma na outra, não sentia mais a carne por baixo dos calos que adquiria novas camadas a cada Tijolo colocado. O café fervia enquanto as preocupações se transformavam em vontade de olhar a noite. Colocou pedaços de rapadura na caneca e despejou o café que escaldava aquela pedra doce ate se devolver, adoçando a bebida enquanto encostava seus cotovelos aos joelhos quando sentava no batente para olhar a noite lá fora; tranqüila, sem o latido dos cães, os medos calmos como o sono que vinha aos pouco. Olhava as constelações, as pálpebras caindo em cansaço. O corpo se rendendo ao conforto da esteira de palha. Esquece de apagar o candeeiro, esquece de remover o barro de sua pele, esquece dos Tijolos que terá que fazer ao despertar das primeiras horas matutinas.
          O galo canta quando os primeiros raios do dia que nascia tocavam suas penas. O Dono da Olaria movido por um hábito quase mecânico. Coloca suas pernas para caminhar na direção do barracão, que ficava ao lado da casa. A olaria, construção superior em tamanho, se comparado com as outras construções do terreno, ficava afastado uns cento e cinqüenta passos do cacimbão onde colhia a água que minava gota a gota durante todo o dia. A carroça de mão com o barro rubro parecia menos pesada. Conseguia equilíbrio para carregar uma lata na cabeça e empurrar a carroça ao mesmo tempo. Um fio de fumaça ainda saia da pequena chaminé, o formo ainda estava com um resto de lenha ardendo, esperando a chegado que iria manipulá-lo com o mesmo ímpeto de sempre.
             Emborca com sopapo a carroça, o barro e despejado numa parte rente e mais lisa da olaria. Chapiscava com água o pequeno morrote de barro. Ajoelhou-se e rendeu suas mãos a amassar continuamente a pasta; movimentos de baixo para cima, sempre no mesmo ritmo, compassos leves, práticos, às vezes quase involuntários, como os grandes maestros fazem ao reger os músicos de uma orquestra. Misturava e misturava, tentando alcançar uma homogeneidade comum aos que conjuravam aquela arte. Antes de chegar ao ponto para ir para as fôrmas é surpreendido com a chegada de uma voz que mesmo familiarizado lhe rendia espanto:
              - Começou sedo hoje. – Implicava o estranho em tom lúdico e uma leve risada que ostentava sua segurança na informalidade do encontro. 
             - Sedo nada. Comecei na mesma hora de sempre, de todo dia. – Retribui o homem do barro com um gracejo replicado com a mesma risada. 
             - Como é que tu sabe que é mesma hora, tu vivi aqui nesse fim de mundo, não tem nem relógio. – O estranho leva a conversa ao nível questionável de seriedade, mas sabendo que o Dona da Olaria não se importaria com as implicações. Eram conhecidos, e pela informação sobre a ausência de régios na vida do fazedor de Tijolos aquele encontro seria mais um entre centenas que já tiveram.
              - Galo canta, e é só. – Resumia ele olhando para trás e recebendo os comprimentos do sujeito que parecia ser um companheiro de longas conversas.
             - Hoje é domingo. Por que tu tais ai pegado no serviço? Vai descansar.
             - Tenho que terminar esse quarto de milheiro hoje. Amanhã vão arar as terras do Seu Almeida e eu to pegando esse barro num barranco lá perto. Nem ele, nem ninguém podem saber disso. O barranco fica dentro do cercado.
             - Ate hoje num sei pra que tu quer tanto Tijolo. Eu tava aqui ti tocaiando. Pela as minhas contas tu já deve ter feito uns cem milheiro. Era pra ta rico. Quer um conselho...esqueci aquele lugar. Lá ta tudo morto, ninguém quer mais ir morar naquele cemitério de casas. Só tu mesmo. Quando você chegou aqui uma ruma de gente adivinhou que tu era doutor, tava na tua cara. Escritinho, sem tirar nem colocar. Com esse elegância toda. Educação!! Vixe!! Era manchete da gente de Poço de Fora. Vai-te-embora homem, larga essa tua vida de coitado. Passa o dia todo que Deus deu, fazendo Tijolo e levando praquele lugar amaldiçoado. Tais pagando penitencia é? Fizesse promessa foi? Tais fugido da polícia é? Ficou na minha cabeça tua chegada. Foi naquele dia que chovia feito Cão. Nunca tinha chovido tanto naqueles dias. E foi mermim no dia que tu chegou. O povo daqui dizia que aquela chuva tinha alguma coisa contigo. Que num era chuva de verão. Sabe como é essa gente daqui. Pra eles nada é por acaso, e tua chegada aqui deixou uma duvida no juízo desse povo. Afinal, você era o que lá na tua terra?! Douto? Teu pai é dono de fazenda? Advogado? Santo é o que tu não é, num precisa nem me dizer.
            - Já chega! – Interrompe o fazedor de Tijolos, que demonstrava irritabilidade com aquele interrogatório repetitivo. – Já falei pra você que não quero falar sobre meu passado: quem eu era, o que eu faço, para onde vou. Quem eu era não importa mais. E outra! Tem muitas pessoas lá em Poço de Fora, ate mesmo aqui na região, que tem a mesma postura e educação que eu. Não vejo o que lhe motiva a me interrogar assim. Se tens curiosidade sobre o que eu faço lá nas ruínas, sugiro que me ajude a levar esse quarto de milheiro para lá. Quem sabe não se interessa pelo serviço?
              - Daquele lugar só quero distancia.
              - Bom. O convite ta feito. Não posso lhe pagar pra me ajudar, mas posso mostrar algo que descobri naquilo que você tenta manter distancia.
             - Me convida pra trabalhar e ainda por cima de graça!!! De jeito nenhum. Só daqueles que gostam de conversar, escuta histórias tu sabe né, num tem muito o que fazer por aqui. Tu é meu amigo velho de bate-papo, de tomar uma caninha com peba de vez em quando. Mas num me peça pra levar seus Tijolos praquele lugar.
             - Não estou lhe pedido pra ser meu empregado aqui na olaria. Só quero mostrar a você o que estou fazendo lá nas ruínas.
             Após ser feito a insistência do convite o visitante escondeu-se atrás de seu silêncio. Murmurando apena com o movimento dos lábios uma resposta que fermentava certa curiosidade que, talvez, sempre tivera: ir às ruínas que tanto consumia o tempo do fabricante de Tijolos. Em verdade, não existia medo em aproximar-se de lugar amaldiçoado por muitos. Não havia medo, apenas a influencia dos mitos, das histórias que ecoavam há anos na região. Não seria aquele homem coberto de barro dos pés a cabeça e de um passado desconhecido que iria colocar receios a mente de um caboclo com aquele. Já conhecia aquele desterrado há bastante tempo para ter certeza de que nada de mal ele podia fazer contra sua integridade.                
            
 II

        Já o sol aquecia o meio dia quando os primeiros Tijolos eram desenformados e colocados na beirada do forno. Inseridos um a um com uma espátula de madeira de ipê – uns vinte ou trinta por fornada. A temperatura do forno era ajustada a olho; a lenha colocada conforme a pele do fazedor que sentia o calor adequar-se ou que a intuição dizia se estava ou não adequada.
        Ficava pensando se o conversador amigo viria ou não, se aceitou o convite por conveniência da simples curiosidade. Se a prudência não deixava seus pensamentos em paz, então o melhor ato seria não confiar em sua vinda. Carregaria com os Tijolos apenas uma carroça, e a outra deixaria de prontidão, caso o conversador surgisse sem maiores reclamações; sem as palavras dos outros sobre as ruínas, que tanto cultivara enfadonhos mistérios que nunca existiam. Talvez, quem sabe, poderia revelar algo sobre si, para saciar sua curiosidade. Mas se assim o fizer, levará nome de “doido”, de “sem juízo”, ou algo parecido com loucura. Em verdade a palavra excêntrico poderia se confundida com tais qualidades. Em um sentido mais adequado ao que estava fazendo nas ruínas, talvez “sem juízo” ou doido fosse mais próximo ao caso.
       “Sem juízo”. Era esse o temor que vagava em seus pensamentos. Há doze meses fazendo aquilo. Lembra dos conselhos do amigo conversador. “Voltar”. Era nisso que ele insistia. O fazedor de Tijolo já perdera a contagem do número de vezes que ouviu essa palavra: “Voltar”. Todos voltam, afinal, para fugir de algo que não podem reconstruir.
         Reconstruir as ruínas era a sua maior vontade. Seus motivos não haveria de serem outros se não a própria recusa de seu passado, mas não se reconstrói coisas apenas pela precisa de mudar o presente. Haveria outros motivos: mais unidos ao que todos costumam negar, rever cores que seus olhos deixaram de ver, olhar o dia e a noite como costumava ver, com mais ímpeto de prazer. Não negaria as fraquezas de sua humanidade até concluir aquilo que pretendia terminar.
         A carroça estava cheia. Os Tijolos amontoados na postura do transporte. Nenhum sinal do amigo conversador. Achava inútil tê-lo convidado. Uma da tarde partiria para as ruínas, e não podia perder-se em atrasos, pois queria aproveitar a luz do dia terminar uma pequena parte que faltava em uma das paredes frontais da casa azul. Não se consumiria mais em preocupações, iria naquele instante. Mas antes mesmo de caminhar os primeiros metros, o amigo conversador aparece, como as ilusões fantasmagóricas e ao mesmo tempo hilárias dos que surgem contra o esperado.
          - Achava que eu não vinha?! – O inesperado exclama, demonstrando estar pronta para empreitada vespertina: sandálias de couro, calça e camisa velha, cabaça e bisaco.
         - Veio pra que?! Já to indo. – Dizia o fazedor de Tijolos empurrando a carroça e esquecendo a presença do conversador com uma indiferença que retroagia os intentos do convite.
         - Cadê minha parte, a que eu tenho que levar. – Estranhava, olhando para os dados a procura de sua parte na empreitada de dois quilometro ate as ruínas.
         - Tava só de brincadeira com você. Sua companhia pra conversa já é o bastante. Não tinha nenhuma intenção de dar-lhe esforço.
         - Agente divide o esforço então. Eu carrego até o barreiro de Amaral e tu carregas o resto.
         - Combinado! – O trato veio pela sua afirmação, mas com a desconfiança de não sê-lo feito. Acreditaria mais em feito heróicos, pois não havia de crer no amigo irônico e queixoso pela proposta do trabalho     
         O acordo proposto pelo conversador não rendia menos que um alívio irônico. Pois o sol ardia mais do que o costume. E a tarde aparentava dissolver o tempo com maior rapidez naquele instante. Teria que colocar todos os Tijolos antes que a noite tomasse suas formas. Necessitava da luz do dia.
         Passaram pelo barreiro, mas o conversador insistia em carregar a carroça ate as ruínas. E à medida que se aproximavam uma vigorosa atmosfera de seriedade transformava uma conversa frívola numa seriedade de silêncio. A caminhada ganha lentidão e as primeiras paredes surgiam entre as algarobas e os mandacarus.
          Deveria ser comum para o fabricante de Tijolos aquela paisagem misturada com pedras e plantas. Como se ambos brotassem da terra. Como se o chão as empurrasse de baixo para cima. Aquelas paredes incompletas; atrofiadas pelo abandono dos que ali moravam. Algumas ainda mensuravam as formas de casa, outras, perdidas de qualquer plano de formas. O vento zumbia como o vôo de uma vespa. Ali, os ruídos eram vozes que suspiravam no imaginário deles palavras desordenadas. Não era medo o que se podia sentir, uma sensação de abando da própria alma, quase como o sentimento de saudade. “Mas de que?” Espasmo compartilhado pelos dois. E eles se olhavam como se sentissem um atrito de duvidas. Para o amigo conversador aquela sensação era nova, mas para o fazedor de Tijolos era estranho ter sempre a mesma sensação todas às vezes chegava às ruínas.                                          
                  
             
     III                    
                                                                           
          Não mais haveria tardes como aquela. Tão pouco as cortinas do céu se fechariam diante deles com tamanha escuridão. O fim de tarde se transformava em noite mais cedo do que o costume de todas as tardes. Atentos ao andamento incomum da natureza, o fazedor de Tijolos calava mais e mais com o desmembramento dos instantes. A presença das nuvens negras como um prelúdio recursivo; o chamado Dilúvio de Vânia, que em outrora corria desvairado nas memórias caleidoscópicas dos que antecederam o abandono daquele lugar, agora despertava calado, sorrateiro como serpentes em devaneios pela presa que observa para um bote. Mas as gotas não caiam; e a chuva continuaria em seu silêncio espontâneo, despreocupada, a surpreender com uma brusquidão desavisada, sem ninguém esperar por sua vinda; cair com maior força, com semelhança daquela do dia da chegada do fazedor de Tijolos. E este, indiferente ao fato que vigorava; e sem prestar olhares para o amigo conversador, continuava a colocar, um a um, os seus Tijolos, com prevendo que os instantes que se seguiam eram apenas resmungo momentânea de quem o observa. A natureza avisava a sua maneira uma proibição de mudar o confuso passado que não deveria ser mudado. Nada pode mudar o passado. Pois, tudo fora escrito com os irremediáveis traços do tempo. Que um divino tempo passou, arrastou e moldou aquele que foi uma Vila com vida. A argamassa era o barro feito do chão em que pisavam. Não menos aquele lugar de penúria tinha a oferecer-lhe. Uma labutação sem razões, como um alto-flagelo escarnado para si mesmo. Seria assim que pensariam um homem ou uma mulher – uma criança apena o observaria, afincado em algum batente, de alguma calçada, de qualquer lugar. Era assim que o amigo conversador se sentia, como uma criança, a cativar-se pelos movimentos compassados do fazedor de Tijolos, como encantos de uma magia suave que incrustava nos olhos e o fazia esquecer da negritude que caia sobre eles. Aquele afoito de chuva foi apenas um sussurro. O resto de tarde que ainda respirava deu-lhes um poente com um céu avermelhado e esbelto. E os medos se calavam vagarosamente, não pelo dia que soava agouros, mas pelo colocar dos Tijolos, que reconstruía uma parede deformada pelo esquecimento dos homens. Ria só a cada Tijolo colocado, como se aquele serviço lhe de serenidade a sua alma. Contou ao amigo conversado, com brusquidão de palavra, que estavam perdidas em um silêncio, que havia terminado uma das casas, e que dera sua tutela a um senhor que lhe falava em versos. Que proseava perdido entre as línguas normais, e que a maioria parece esquecer que existe. Uma língua única, que vem do espírito, e sendo assim todos deveriam conhecer. Assim como o fazedor de Tijolos; ninguém o conhecia quando chegou em Poço de Fora. Sabiam muito bem que vinha de longe. Ele, por alguns instantes, pode ver e ouvir citações melódicas que trazia consigo, em papeis sujos e amolgados. Eram versos, dizia ele. Seu significado só teria importância se multiplicado por várias vozes, vários olhares. Dizia que estava ali para rever seu passado, aquele que tanto lhe custou uma espera, e assim descansar num ermamento que haveria de existir em si mesmo. O fazedor de Tijolos estimava-o como amigo, e por isso levaria, antes do anoitecer completo, o conversador para conhecê-lo, para prosear e falar-lhe em versos um pouco de sua história.
      A parede estava quase pronta. Era quase noite, confessara ao convidado que não costumava trabalhar no escuro, eram raros os dias que ia noite adentro. Já não havia mais luz. Acende o pavio do candeeiro. Mas estava curto, não duraria mais que alguns minutos.
       -Esse pavio num vai durar muito não. Tem outro ai? – Pergunta o amigo conversador, preocupado com a escuridão que os cercava.
       - O pior é que não tenho. É você, deve ter um ai?
       - Eu não! Foi tu quem me chamou pra vim. Só tem comida aqui dentro.
       - Eu já devia saber.
       Sem premeditar o relevante de um pavio, no entanto, seguro de que estavam em terreno amistoso, o fazedor de Tijolos convenceu o amigo conversador a ir ate uma casa no outro estremo das ruínas. Lá iria encontrar ma casa onde, talvez, seria recebido por um velho conhecido.
        - Procure por uma casa que estar terminada. Provavelmente você verá luzis acesas, algum pedestal bem na frete, com uma lamparina e uma pequena varanda repleta com plantas bem verdinhas. Num tem erro. É só seguir a rua.  
         - Mas de jeito nenhum!!!
         - Ta com medo!!! Cabra mais medroso. – Havia de notar um certo divertimento em toda a cena. Se perdia em gargalhadas na medida em que os Tijolos continuavam sendo colados.
      - Tais com medo de que homem? Vais me dizer que tu acredita em fantasmas, alma penada, essas coisas.
      - Acredito em muitas coisas. E não me atrevo a ficar mangando do que não conheço.
       O amigo conversador calava, assim, as gargalhados do fazedor de Tijolos. Pois em suas poucas palavras havia uma retórica de repudio as descrenças do fazedor de Tijolo. E este calava-se ao ouvi-las, com um silêncio de respeito. Ele mesmo havia criado suas crenças nas ruínas que estava reconstruindo. A matéria dos Tijolos era viva; tanto quanto as plantas que os cercavam; tanto quanto o som do gado que pastavam soltos naqueles lados. Em seu silêncio, talvez pensasse, “tanto quanto ele próprio”. Que tinha alma e corpo, que respirava o ar da noite e sentia o vento arranhando seus olhos. Olhava para o amigo refletido sobre suas palavras. Olhava a parede que construía, imaginando o dia que chegou às ruínas e no destino que criara para si: fugindo de tudo, a olaria, o amigo com o dom do verso, no amigo conversador. Olhava para seus calos, para o montante de Tijolos que ainda tinha que colocar. Os pensamentos corriam desvairados, doidos como os ruídos que sua imaginação não parava de criar, afinal era só isso que ele criara ate aquela dia. Quando iria largar sua penitencia? Em tudo há um começo e um fim, mas por alguma razão aquelas ruínas se ajustavam com sua vida: seu perpetuo lar, seu silêncio, e, não muito distante disso, seu túmulo. Sua repentina seriedade, advinda dos dizeres entoados de zangas do amigo conversador, não conjurava uma discórdia de mentes, alias, longe disso, em muito havia parilidade de idéias em ambos. A seriedade que vigorava no fazedor de Tijolos era uma ressonância do passado. E mais e mais este passado parecia corroer suas memórias. E uma vertigem crescia em si. Esquecia, como por encanto, daquilo que fazia. A parede calou-se, já não colocava mais os Tijolos, suas mãos, veementes ao trabalho, agora pudicas. Limpando sua testa, como se estivera a lembrar que estava cansado. O pavio exala apenas a sinuosidade de um filete de fumaça negra, terminara.
       - Esquece o que eu disse. Eu não queria tirar brincadeira contigo. Pode ir que num tem perigo nenhum. Quem mora naquela casa é um antigo amigo meu, “amigo velho”, sabe. Você vai lá e fala que eu to aqui e ti mandei buscar um pavio. Ele é gente boa.
          O amigo conversador seguiu o caminho que levava ate a casa de um homem que ele nunca tinha visto antes. Sem replicas, como aceitando, em seu silêncio, as desculpas do fazedor de Tijolos. 
          Foi guiado pela instrução do fazedor de Tijolos ate ser pasmado pela luz de uma lamparina. Uma casa reconstruída, como ele havia dito, e bem no meio daquelas ruínas.
         Um homem surge defronte a casa, como se já o aguardar-se. Sem descrição, como são as imagens dos sonhos. Sem formas como é o espírito. E na sua fala entoava uma língua nova para ele, com uma pureza que se confundia com o próprio medo do desconhecido.                                                                                            
                     
                  
                                                                                         - Lembre-se que tudo passa.
  Ao olhar que nas próprias ruínas que lhe ferem,
 Tudo passa.
 E se reconstruir as enfermas memórias,
 Esperando que passado volte, olhando para um presente possível,
 Como uma resposta ao futuro que não se pode ver ou lhe coloca em conforto,
Seria uma resposta corroída por sofrimento.
E este não seria outro, se não o próprio ventre se si mesmo.
Tudo passa.
Colocas as mãos sobre os Tijolos,
Reconstruindo sem referisse aos outros.
Serão menos vis, as ruínas que ferem.

        O homem na que recebia o conversador sorria ao olhar as expressões dos visitantes. Ele ainda não entendia porque fala com uma língua em desuso. Língua morta, maior vivencia deveria ter tido aquele homem. A língua dos versos que o amigo conversador conhecia de outras fontes, mas nunca tivera presenciado sua mística.
       - Não se espante, não sou louco ou coisa parecida. – Acalmava as dúvidas do assombrado conversador, que, diga de passagem, demonstrava encantamento repentino por aquele estranho que continuava a sorrir como se pouca diversão tinha nos últimos tempos, a não ser provocar espantos em novas almas que penetravam em sua morada.
       O anfitrião tinha semelhança no falar. Comparavas se com o fazedor de Tijolos, que ainda não retornara das ruínas. Mergulhado em seu trabalho, esperando um pavio do candeeiro para o termino da parede.
       - Seu rosto é familiar. Vi você, em certa ocasião, lá em Poço de Fora. É o sujeito calado, que quando está perdido, ao entrar em si mesmo, dentro da olaria, conversa quinem um papagaio. Esquece do seu mundo e procura outro na própria curiosidade.
       - É o que, homem?!
       - Calma, não precisa ficar ai se perguntando como eu sei sobre você. Isso aqui é um lugar pequeno, diferente de outros lugares, onde já morei. Aqui todo mundo sabe de tudo. Prefiro assim, por motivos que não vem ao caso. Agora diga! O que aquele visionário de ruínas mandou você buscar? – Pergunta o homem com sua postura ereta, com firmeza ao cruzar os braços e voz de imperador.
        - Como o senhor sabe que eu vim a mando do meu amigo lá da parede.
        - Ninguém vem aqui a não ser ele. Se pudesse escolher, viria ate aqui, nesta casa, dentro destas ruínas que todo mundo da região amaldiçoa?
      - É verdade.
      - E então, o que foi que ele mandou você vim buscar?
      - Só um pavio de candeeiro.
      - Vou mandar pra meu amigo velho algo pra ele comer. Deve ta com fome danada. Com certeza ele não ira matar a fome com orgulho e um pavio.
      O homem que deixara o conversador esperando na pequena varanda. Entra e retorna com um pacote que continha mantimentos para uma janta de reis.
       - Não se acanhe, é pra você também. – Entrega o pacote e se depende como alguém que deseja recrutar sua própria solidão. Talvez desejando tomar distancia de uma pergunta que, supostamente, cairia da boca de qualquer pessoa que tivesse contato com o fazedor e Tijolos.
        - Senhor! – O conversador chama em tom de apelos de insistência curiosa o homem acabara de dar-lhe as costas. 
        - Sim.
        - Queria que o senhor me desse uma informação.
        - Hum!!! Já sei você quer que eu lhe fale sobre o amigo velho. Por que ele fica feito maluco, fazendo Tijolos o dia todo que Deus deu, reconstruindo as casas destas ruínas.
        - Por favor. Seria importante pra mim.

                                                                                 
IV

        Por minutos o homem que falava em versos tentou responder uma pergunta que fazia a si próprio há anos. A existência dos “por quês”, que sempre arrasta para um infinito da alma, respostas permeadas de pessimismo e imaculadas por verdades que nem sempre são as verdades que se procura ou que são encontradas, agora açoitava as incertezas de homem que, ate aquele momento, era confortado pela ausência de dúvidas que impregnava o mundo fora das ruínas. Ao olhar o visitante parado na frente da varanda, a esperar uma umas poucas palavras, um breve comentário, um sussurro de resposta. E quem dera ele ser o portador de uma resposta? Quem num mundo de pessoas normais, com vidas normais, poderia explicar a presença do fazedor de Tijolos na região. Tão pouco explicar seu comportamento de ermitão, seu martírio que para quase todos era pura loucura, obsessão por algo de seu passado, quem deveria saber? Os anjos talvez estivessem a olhar para aquele manipulador de barro. E eles mesmos se perguntando que tipo de espírito seria aquele. O próprio fazedor de Tijolos não respondia, e o homem que falava em versos repudiava sua imobilidade de palavras. Preso no seu próprio agora, experimentando sentidos que só tiveram substância no passado. A pequena conversa com o amigo conversador, que agora se tornara tão calado quanto o rosto de uma alma penada, pasmo, a ouvir alguma partícula a cerca do manipulador de barro, deixou em sua curiosidade apenas partículas de histórias. Talvez nem os seres sonâmbulos, que vagueiam entre os vivos soubessem algo sobre os intentos do fazedor de Tijolos. O homem que fava em versos explicara ao conversador que só conseguia falar sobre a reconstrução das ruínas quando o flagrava em momentos de trabalho: quando se perdia em pensamentos ao por um a uma os Tijolos, quando examinava o prumo das paredes, quando, no descanso de seus braços e ombros, balbuciava uns poucos verbetes acerca dele e dos motivos que o trouxeram ate ali, naquele fim de mundo. Mas os mesmos encantamentos que contaminaram o amigo conversador também esmaltaram o homem que falava em versos. Um abandono dos ruídos de sua vida que tinha era a única certeza. Aprendera o oficio em sua solidão, sem perguntar algo a ninguém, parecia trazer consigo o conhecimento, mas não a prática. O bom artesão é aquele que descobre seu talento labutando com a rebeldia, investindo num tempo corrompido pela dúvida, açoitando-se de investiduras solitárias, ocultando-se, indolente aos olhos alheios. É o bom artesão aquele que constrói, desconstrói, se perde entre estes dois trabalhos, e reconstruir as paredes que formam sua realidade. E ele esta cercado por elas. Sozinho, a sentir a aspereza da demora, comunicando-se com si mesmo, entre monólogos de raiva abrupta, consolando-se apenas com seu reino de ruínas. 
     - Para ele cada Tijolo tem um sentido: uma espera, uma memória, imagem, alegrias ou tormentos. Para ele fazer Tijolos tem um fim; um começo para um sempre. As ruínas que tempo não deixara de castigar. Ele não fala de si, pois isso não teria maior importância do que seu estado de sonho, seu estado de reconstruir. E ele fica a margem de uma loucura sonâmbula, sem sentido para os que tentam procurar um significado. Há significado nessas ruínas? Conte-me um apreço que venha de alguém que não seja você! Conte-me sobre alguém que deseje estar entre estas paredes além dele. Será que existe? Posso lhe responder. Eu, que moro aqui desde quando ele terminou de reconstruir a primeira casa. Esta aqui. Esta que você vê. Tem luz no escuro, tem vento no abafado, tem água no seco, tem pulso onde só havia esquecimento. Logo ele terminará a segunda de dará a quem desejar uma moradia. Ter-se-á uma vida para terminar a cidade, isso não posso lhe oferecer resposta. Pois o futuro não pertence nem a mim, nem a ninguém. Mas talvez esse futuro, criador de imagens, esteja o prendendo em seu presente. E lá ele esteja a salvo, em conforto com sua conformidade. A de fazedor de Tijolos.
         O amigo conversador continuava em seu silêncio, com olhos atônitos, pensando nas palavras do homem que falava em versos e que agora lançava-lhe uma prosa que enrijecia a consciência. As lagrimas sempre caem com mais sutileza nos indivíduos mais confusos sobre a vida que levam. E a duvida de pensar se estar realmente vivo e preço a se pagar quando se fronteia com certas verdades. Naquele instante, a única consumação sintática que havia na boca do amigo conversador era:
        - Será que eu serei o próximo a morar por aqui.

                                                                                                Edson Moura

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