O Garrafeiro (conto)


     Não pude ver as mistura que fazia - ele jamais permitiu que ninguém visse, era um segredo, o seu segredo, e sempre carregando, creio, a certeza de que todos os segredos são tão frágeis e traventos quanto o próprio ato de carrega-lo.
     Era o Garrafeiro de Santa Luiza, e não mais que isso. Pois era daquele jeito que gostava de ser chamado, “o Garrafeiro”, apenas. Passava o dia sentado à beira de um calor de brasas, mexendo um caldeirão com uma colher grande de madeira. Quem o visse, com sua indumentária apregoada por trapos, colocaria moedas no chão onde repousava seu corpo, sem antes lhe perguntar sobre suas necessidades ou conveniências neste mundo. Seu cheiro não era menos desagradável que os vapores que saiam do caldeirão e o cercavam – poderia ser noite, poderia ser dia, os vapores sempre e o cercavam.
       Desde quando o vi pela primeira vez, percebi que nunca tinha qualquer preocupação com sua própria aparência ou com seus hábitos. Urinava aonde as decências da necessidade pediam, visto que não havia, para ele lugar mais digno para se urinar do que um poste ou um pé-de-parede qualquer. Cuspia sem os pudores da boa educação, o que seria mais estranho se assim não o fizesse: cuspia quando via alguns monumentos de pretextos duvidosos. Escarrava nos jardins mais belos da cidade. E sempre que fazia isso, aparentava leveza de espírito. Que não lhe permitam caminhar no Éden, ou nos Jardins Babilônicos - e um pedido sempre fiz aos poderes onipresentes: permitir que alguém veja o que o Garrafeiro de Santa Luiza mistura naquele caldeirão. Mas os pedidos nunca eram ouvidos. Quem sabe não seria o Garrafeiro o próprio guardador das almas inquietas, como a minha que sempre foi apreensiva desde o momento em que gritou a palavra “futuro” nos cantos da minha cabeça. É sempre possível estar em desprezo com a vida comum. Disseram uma vez que o Garrafeiro de Santa Luiza curava este tipo de desprezo. Que aquilo que mexia era uma mistura santificada. Outros, com um tipo estranho de benevolência, oriundo talvez dos próprios caprichos da espécie humana, diziam que aquilo era macumba, magia negra, serviço do além, essas coisas que todos dizem quando admitem que existe o que não existe. Uma vez ele sorriu quando lhe chamaram de louco. Outra vez sorriu mais ainda quando lhe chamaram imundo. Outra vez lhe falaram que cresciam vermes de mosca onde ele pisava, que não havia nenhuma beleza nas coisas que fazia. Disseram que se continuasse a fazer aquelas misturas fedorentas, que nauseava qualquer pessoa que passasse por perto, acabaria sendo linchado. Lembro que para cada ameaça, insulto ou desprezo que lhe ofertavam retribuía com um sorriso indiferente. E a cada sorriso que este propunha, maior era o aborrecimento dos moradores. Tentaram uma vez leva-lo para os limites de Santa Luiza: amarraram seus pés e mãos e o colocaram na carroceria de um caminhão. Mas quem dera que, para aqueles que não desejavam ver sua presença, os limites da cidade fossem tão distante quando o desejo de que um dia o Garrafeiro deixasse de existir. Não entendo por que os habitantes de Santa Luiza tinha tanto desdém pelo Garrafeiro, ou que seja mais cândido: nunca entendi por que um caldeirão fedorento transtornava tanto aquelas pessoas. O certo era que ninguém podia ver a mistura que fazia, era sue segredo. Mas com o passar do tempo os segredos se enfraquecem, cansam de serem segredos. E o Garrafeiro, assim como muitos, não era dono de seus próprios segredos. Ao momento que minha persistência em descobrir quais os fins para sua vida; de suas intenções neste mundo; quais os anseios para a formula misteriosa contida em seu caldeirão. Acabei, como todo acaso que se considere acaso, descobrindo que não existia mistura alguma. A formula para curar almas inquietas não existia. Ele, vencido pela teimosia dos segredos que não querem ser segredos, e também, quem sabe, pela minha persistência em orbitar seu ofício, acabou revelando seu pequeno mundo. Não existia mistura de substância; não eram encantamentos; não era a cura para as almas inquietas. Sem hesitação, pois não havia mais segredos, despeja ao chão aquela fervura, formada por toda sorte de objetos que ele mesmo encontrava pela cidade: garrafas, colheres, copos quebrados, enfim, tudo que era sólido e que pertencia a universo equivocado do lixo. Nos dias que se seguiram, não se tinha mais notícias do Garrafeiro de Santa Luiza. Acredito que tem partido por não existirem mais em santa Luiza objetos que pudessem ser fervidos. Os incômodos de sua presença e de seu caldeirão desapareceram, e com ele todos os serviços de esterilização do lixo que Santa Luiza produzia. Nos dias que se seguiram, não se tinha mais noticias do Garrafeiro de Santa Luiza.                                                                 

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